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01 JUN 2020
ENTREVISTA - Nuno Garcia Lopes: "Não imagino a minha vida sem a escrita"
Por Jornal Abarca
Foto: Zé Paulo Marques
Foto: Zé Paulo Marques

Junho é mês de Dia da Criança e, também, de homenagem a Camões, um dos melhores poetas da nossa história. No Dia do Autor Português (22 de Maio), conversámos com um dos nomes bem conhecidos da literatura nascido na nossa região: Nuno Garcia Lopes, escritor natural da Linhaceira, Tomar. 

Como nasceu o gosto pela escrita?
O meu percurso literário e pessoal acabou por estar muito relacionado com o sítio e a casa onde nasci: a aldeia da Linhaceira. Sendo uma casa de aldeia tinha bastantes livros para a época, quando cheguei à escola primária já sabia ler e escrever. E na segunda classe fiz o meu primeiro livro-revista. O meu pai trabalhava na Fábrica de Papel da Matrena e havia sempre muito papel lá em casa. Dobrava-o e fazia o efeito de revista e foi assim que fiz a primeira revista com uns poemas, e uns textos jornalísticos por brincadeira. O meu pai mostrou aos colegas do escritório, eles gostaram, e isso disse-me que aquilo que gostava de fazer, que tinha já nos meus genes, era algo em que efectivamente era bom e era reconhecido pelos mais velhos. Foi um incentivo muito grande. Depois comecei a fazer jornais diários durante toda a minha escola primária, incentivado, pela minha professora. Tornou-se uma coisa muito interessante, com os meus colegas a replicarem o que eu fazia. Por volta dos 11 anos escrevi o primeiro poema que guardei na minha pasta. Comecei então a pensar na literatura mais a sério. Ser escritor passou a ser um dos meus objectivos. Na adolescência, que é aquela época em que podemos perder ou reforçar estas intenções, aconteceram duas coisas importantes. Uma delas foi um prémio de poesia que venci, aberto a todos os alunos do ensino secundário em Tomar, e foi algo que me marcou muito. Não só por ter vencido mas pelo prémio, que era uma prateleira grande de livros que me trouxe coisas completamente novas de poesia que eu desconhecia. Passado pouco tempo, em Maio de 1983, aparece o suplemento DN Jovem do Diário de Notícias. O meu pai avisoume que ia começar este suplemento para os jovens que quisessem enviar textos, e isso era exactamente o que eu queria. Comecei a colaborar desde o início e isso deu-me a oportunidade de publicar aquilo que escrevia mas, também, uma possibilidade de tertúlia com um conjunto de pessoas extraordinárias. E essas tertúlias ajudaram-me a crescer.
 
O seu pai foi a pessoa mais importante no seu percurso literário?
Quando era novo desejava que o meu pai fosse escritor. Passado uns anos descobri que ele tinha escrito poemas à minha mãe que queimaram [risos]. Mas descobri que quando ele, nos anos 1960, também venceu um concurso literário na escola Jerôme Ratton, com um texto sobre Bocage. É engraçado que o júri não lhe queria dar o prémio apesar de ele ter o melhor trabalho, porque era um aluno do ensino nocturno, o que era um estigma. O professor Manuel Guimarães é que fez finca pé e o meu pai acabou por receber esse prémio. Ele começou a escrever em jornais, mais tarde publiquei o primeiro livro dele no Contador de Histórias e depois, juntos, começámos a fazer o trabalho sobre a Linhaceira que foi algo que o meu pai sempre quis fazer, conhecer as raízes da sua terra, e que foi fazendo paulatinamente ao longo de décadas. Quando me conseguiu chamar para essa tarefa acabámos por fazer um trabalho conjunto e o livro “Linhaceira e as suas escolas” foi o resultado dessa confluência. Foi uma figura tutelar para mim.
 
Qual a importância das raízes na sua construção enquanto homem e autor?
Durante a licenciatura estava convencido de que seria em Lisboa que iria fazer a minha carreira literária, já era uma coisa que eu queria muito. Mas a verdade é que fui dar aulas de jornalismo em Setúbal e no ano seguinte em que pensava que ia continuar lá, não fiquei colocado. Nessa altura pensei em voltar para Tomar e comprometi-me com o jornal O Templário. Passado dois dias soube que tinha sido colocado noutra escola em Setúbal mas já tinha dado a minha palavra ao O Templário e voltei para Tomar. Começo, depois, a fazer o meu trabalho concreto, nomeadamente com o Contador de Histórias, em Tomar. Pensava que precisava de Lisboa para isso mas descobri que não. Porque sempre tive uma referência à terra muito grande, não apenas à aldeia mas à própria terra, gosto muito do cheiro da terra.
 
Não há arrependimento por ter regressado?
Nenhum. Sempre tive uma ligação muito forte à minha terra e vim de braços abertos. Acabei por ficar e todo o meu percurso acaba por estar ligado à minha terra.
 
O que representa a escrita para si?
Vida. Não imagino a minha vida sem a escrita e, ao mesmo tempo, a escrita foi fundamental no desenrolar da minha vida. Boa parte das coisas importantes que me aconteceram foram por causa da escrita. Sempre fui melhor a escrever do que a falar portanto sempre tive maior capacidade de aglutinar as pessoas à minha volta através da escrita.
 
Costuma dizer-se que um livro é um amigo. Ajuda-nos a construir enquanto pessoas?
Estou rodeado de livros, tenho cerca de cinco mil [risos] e sinto um bocadinho isso. São amigos que fui recolhendo ao longo do tempo e onde está boa parte do mais importante da literatura portuguesa. O livro é um amigo no sentido em que nos acompanha como nenhum outro objecto tem essa capacidade. Acaba por ter uma vida própria. É engraçado como ao reler um livro ele é diferente, porque tem muito que ver com o que somos em determinado momento. E os bons livros são esses, não aqueles que são sempre iguais. Uma das coisas de que mais gosto, e mais tenho saudades nesta altura, é de ir a uma livraria, abrir um livro ao acaso, folheálo e encontrar exactamente aquilo que eu precisava. Isso já me aconteceu várias vezes, particularmente em momentos mais difíceis.
 
Recentemente disse que “os livros podem ser a nossa salvaguarda”. Isso acontece nesses momentos mais difíceis?
Não só, porque também pode acontecer nos momentos bons. A salvaguarda não é apenas essa. Salvaguardar é, logo à partida, criar as bases. Se eu tiver os livros a acompanharem-me, a construir a minha estrutura, mais dificilmente chegarei a esses momentos negativos ou já terei uma base que me aguenta. É nesse sentido.
 
Há uma idade mínima para escrever um livro?
Não há. Existe uma capacidade, entre os 15 e os 30 anos, de imaginação e desconstrução que é difícil voltar a ter mais tarde e nessa altura produzem-se coisas extraordinárias. O problema é que nessa idade falta um conjunto de leituras e referências que se ganham com o tempo. Por isso é que geralmente, sobretudo nos romancistas, as grandes obras surgem quando as pessoas são mais velhas. O meu primeiro livro foi lançado no meu 30º aniversário porque achei que só nessa altura tinha uma escrita própria e capacidade para a pôr cá fora. Quando escrevo faço-o a pensar num leitor, nunca escrevi para a gaveta. Só faz sentido escrever pensando que alguém vai ler o que escrevi e tento sempre passar uma mensagem.
 
O que inspira a sua escrita?
Antes de tudo, a vida. Tudo aquilo que me envolve. Vou escrevendo em função das coisas que me vão chegando. A escrita é sempre, de alguma forma, autobiográfica, porque é muito difícil o autor desligar-se do que são as suas vivências. Neste momento estou a escrever um conjunto de pequenos poemas, baseados na ideia do confinamento e na vontade da liberdade. Ontem mesmo surgiu-me uma ideia para um possível livro de contos para adultos, do nada: comprei um produto para limpar estofos por causa dos pelos dos gatos e uma das minhas filhas olhou para o rótulo e disse: “olha diz aqui que limpa nódoas de vinho também. Será que os gatos também bebem vinho?”. [risos] E, de repente, fiquei a pensar que o gato que bebia vinho daria uma personagem a partir da qual se criasse uma série de histórias para adultos. Muitas vezes são os pormenores.
 
Porquê escrever contos infantis? Não é uma escrita mais difícil, que exige mais?
Já tinha feito algumas tentativas mas saíam sempre coisas muito lamechas ou viradas para adultos. Escrevo o meu primeiro livro para crianças, o “Lua do Mar”, quando a minha esposa estava grávida da Mariana, a minha filha mais velha. É quando assumo essa paternidade que ganho um sentido de escrever para crianças. E juntaram-se as duas coisas: a convivência com a minha filha e as minhas sobrinhas e o trabalho do Contador de Histórias dedicado às crianças. Mas é verdade que, ao contrário do que parece, escrever para crianças pode ser mais difícil do que para adultos porque tem de se manter a qualidade porque as crianças precisam das palavras difíceis para aprender. Escrever para crianças não é uma escrita menor! E devemos conseguir colocar-nos ao nível das crianças porque têm uma imaginação prodigiosa. Aqui o trabalho dos ilustradores é muito importante e eu sempre tive a sorte de encontrar bons ilustradores.
 
O século XX em Portugal trouxe um conjunto de poetas memoráveis. Continua a fazer-se boa poesia em Portugal?
Uma das coisas que deixou de haver foram bons editores. Actualmente os grupos editoriais valorizam a venda e o livro de poesia passou a ser um sub-produto. Isto alterou um bocado o mercado. Por outro lado, sinto-me um pouco órfão nesse aspecto, todos os meus ídolos foram falecendo ao longo do tempo. Nasci para a literatura a admirar esses poetas. Tornase mais difícil para mim dizer quais são hoje as figuras que seriam tutelares na altura em que era jovem… temos bons poetas, gente a fazer coisas muito boas, e é de todo o relevo falarmos aqui da Nervo, sediada no Entroncamento, que tem feito um trabalho muito bom.
 
Como surgiu a ideia do “Antívirus”?
Acabei por ficar muito associado ao projecto, e fui o pai da ideia, porque se quis avançar rapidamente e gravei os primeiros episódios, mas com o tempo houve outras pessoas envolvidas, não quis fulanizar a coisa. A ideia surgiu quando em vésperas do confinamento os espaços estavam a começar a fechar, pensei que não fazia sentido ficarmos limitados às notícias do vírus. A ideia era fazer algo em que se continuasse a mostrar que temos coisas para dar às pessoas.
 
São já muitas obras editadas, cerca de quinze. Há algum projecto para breve?
Há um trabalho com o qual estou já há algum tempo, e não faltará muito para ser concluído, que é um livro para crianças mas é também uma homenagem à Helena, a minha mulher, que faleceu o ano passado, e a quem eu quis dar algo que a homenageasse, porque ela trabalhava num ATL. O meu objectivo foi tentar arranjar uma forma em que as criações dela entrassem para a história. Estava pensado sair no dia 1 de Junho que além de ser o Dia da Criança seria o aniversário dela, mas por causa do confinamento não foi possível... Espero conclui-lo em breve.
 
Se tivesse de escolher um livro e um autor, quem são as suas grandes inspirações?
É muito complicado… um autor que gosto de referir como marcante é Herberto Helder que foi o outro grande poeta do século XX além de Fernando Pessoa. Tem uma obra única, e penso que no futuro a sua grandiosidade será reconhecida, tal como aconteceu com Fernando Pessoa. Um livro… é mais difícil ainda conseguir escolher… há um que me diz muito, podia ter sido outro qualquer mas lembrei-me agora deste, “A Invenção do Dia Claro” de Almada Negreiros, que tem coisas extraordinárias na literatura e este é um dos livros da minha vida.
 
Quem é o Nuno para lá da literatura? Como ocupa os tempos livres?
Muito com a família. E, depois, isto que me envolve: o meu jardim, a minha horta, o meu espaço. E gosto daquelas coisas mais ou menos prosaicas: viajar, o mar e fotografia.
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