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01 JUL 2007
REDESCOBRIR MAÇÃO PROFUNDO
Por MÁRIO RUI FONSECA

 

Um punhado de gente luta pela sobrevivência de três aldeias e talvez da sua própria identidade.

 

A estrada já gasta e polvilhada de alcatrão aos remendos guia-nos para o interior de um vale verdejante, ainda marcado pelas cicatrizes de incêndios recentes. Deixamo-nos ir, embalados pelo calor e pelo sol da manhã, sabendo de antemão que algures lá em baixo co-habitam cerca de quatro dezenas de pessoas unidas pelo apego à sua terra, juntas pela memória dos seus antepassados. Fundaram, vai para 20 anos, uma associação de melhoramentos e em Maio inauguram o seu Centro Cultural.

Monte Penedo e Espinheiro abraçam a ribeira de Boas Eiras que, por sua vez, está de mãos dadas com a ribeira do Coadouro, em tempos rios de refresco conhecidos e explorados pelas pepitas de ouro que ali douravam as correntes. Ao cimo do vale, o som de um veículo pesado, veloz, sobrepõem-se ao dos pássaros e das cigarras. A auto-estrada desperta o vale para a modernidade.

Idalina Matos, com 70 anos, professora na reforma e presidente da associação, considera que a nova via possibilita que as pessoas que moram fora “venham mais vezes ao fim de semana”. Opinião partilhada por António Matos, o tesoureiro, que adianta que algumas pessoas “até vão comprando por aqui casas degradadas” e que as vão recuperando a pouco e pouco. “É que aqui”, sussurra, “ainda se pode acordar com o chilrear dos pássaros”.

Por este vale feito de vida, bandos de pardais brindam à mãe natureza logo pela manhã. Idalina Matos realça a “boa qualidade de vida” que estas aldeias proporcionam e um “óptimo microclima”, o que considera a conjugação “ideal para um fim de vida em paz”.

Aqui, em Monte Penedo, queijos, presuntos e enchidos caseiros são partilhados à volta da mesa com o tinto da adega. “Hoje, por acaso, até estamos a beber vinho ali do Ti Valente”, atira Acácio Loureiro, de 72 anos que, em pequeno, vinha das Mouriscas ao vale “para a venda”. Começou a namoriscar e acabou por casar e aqui se fixar: “Já lá vão mais de 50 anos”, recorda. Agora serão 45 pessoas que vivem divididas por estes três lugares, garante António Marques, sendo que no Espinheiro já não vive ninguém: “Há seis meses morreu a última pessoa” que por ali fazia vida. O dirigente associativo, 57 anos e contabilista de profissão algures na grande Lisboa, não desarma e diz mesmo que a ideia de todos é manter acesa a chama do Espinheiro: “nós estamos aqui e somos nós que vamos ajudar a levantar aquela aldeia”. Uma vontade difícil de entender sabendo que nos últimos vinte anos apenas um baptizado foi efectuado por estes lugares.

O decano do vale, Acácio Loureiro, não esquece o pesadelo dos incêndios que todos os anos ameaçam a segurança e a vida destas gentes sendo que o de 2003 é o que mais presente tem na memória: “foi horrível. Ficámos praticamente sem nada. Até um palheiro que eu tinha na horta ardeu”, diz, recordando que não houve tempo de salvar nada. “Só deu para fugir”, lembra quem sobreviveu a este incêndio que quase apagava a identidade de uma terra e das suas gentes.

Mas, em vez de resignação perante o fatalismo decorrente do fenómeno da desertificação e do apelo da auto estrada que apita constantemente lá de cima, a população decidiu dar as mãos e enfrentar a situação. Unindo esforços e vontades edificaram, ano após ano, tijolo por tijolo, um edifício moderno a que chamaram de Centro Cultural. “Investimos aqui 100 mil euros”, contabiliza António Matos. Um ponto de encontro da comunidade, com café, internet e esplanada. Mais um museu e uma biblioteca que isto da cultura toca a todos. Factores que testemunham a identidade de uma terra e das suas gentes que daqui jura não sair. “Sabe”, diz Idalina Matos, “a natureza é muito sábia; num ano deixa queimar tudo e no outro tudo ressuscita. Que melhor local para apreciar a obra de Deus do que este vale?” afirma a líder da comunidade apontando para as cores que pintam a paisagem: “veja, ele é o azul, o verde, o amarelo, o lilás… e agora até os animais selvagens começam a aparecer”.

Idalina Matos fez a escolha para o seu fim de vida no local que desde sempre idealizou: “primeiro é preciso sonhar e, depois do sonho, vem a realidade”. Acácio Loureiro, calejado pela experiência de vida, olha para o sol de Maio e não contém um mau pressentimento: “temo que tudo se esteja a preparar para mais um Verão muito mau. Deus queira que não”.

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