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01 DEZ 2008
SARDOAL: QUINTA DO VALLE DA LOUZA
Por MARGARIDA TRINCÃO

 

As paredes transpiram as memórias dos que lá viveram. As suas lágrimas e risos, as angústias e alegrias, os dramas e vivências das várias gerações que habitaram os espaços que Manoel Constâncio (1726-1817) fez nascer. 

 

Na Quinta do Valle da Louza, em Sardoal, bem junto à aldeia abrantina de Sentieiras, Manoel Constâncio (cujo nome foi atribuído ao hospital de Abrantes) aplicou as economias de uma vida de cirurgião. Um dos primeiros cirurgiões portugueses, com diploma passado por António Soares Brandão, “Cavaleiro professo na Ordem de Cristo, Cirurgião de Sua Câmara Real, dos seus Exércitos, e Cirurgião mor dos seus Reinos e Senhorios de Portugal”, no reinado de D. José. Manoel Constâncio contava então 32 anos, estava-se em 1758. Há 250 anos.

A efeméride foi assinalada a 21 de Novembro pelos actuais donos da Quinta do Valle da Louza, Alexandra e Carlos Lopes de Sousa e foi também a apresentação a amigos e convidados de um projecto que acima de tudo pretende lembrar a figura ímpar de Manoel Constâncio, preservar a sua obra – “a sua mui nobre Quinta do Valle da Louza” - e torná-la sustentável actualmente.

Um projecto grandioso não só pelos montantes envolvidos, mas pela forma como tudo foi inter-relacionado. A quinta estende-se por largos hectares de floresta, eucaliptos e pinheiros, sobretudo, mas é no seu núcleo central – sete hectares – que incide o principal investimento. Com Alexandra e Carlos Lopes de Sousa colaboram técnicos das mais diversas áreas. Desde a arquitectura à enologia, passando pela biologia, design, engenheira, agricultura ou história.

A Quinta do Valle da Louza é uma sociedade agrícola, mas vai muito para além disso. 

A casa primitiva construída por Manoel Constâncio, uma habitação térrea com uma pequena capela onde repousam os restos do seu criador, foi restaurada como era e decorada com o mobiliário da época. “Que me desculpe o arquitecto, mas ali não haverá alterações” afirmou Carlos Sousa. 

Divisões pequenas, para onde Manoel Constâncio “fugia” sempre que podia e onde viveu os últimos anos de vida. Jubilou-se de lente de anatomia com 79 anos e faleceu aos 91. A cozinha, a ante-camera da capela, o quarto que conserva a cama do cirurgião e o lençol puído com o seu monograma bordado…

Património original

Não foi possível datar com exactidão o início das obras na quinta. Aponta-se o ano de 1760 e sabe-se que a casa primitiva, a capela, o celeiro, alguns jardins, tanques, fontes, minas, caleiras, caminhos, terraços agrícolas foram construídos até 1800, bem como a organização do espaço tal como está.

A casa solarenga, actualmente existente, foi edificada na segunda metade do século XIX, a partir do celeiro, para além de outros jardins, lagos e grutas, mantendo inalterável o espaço construído anteriormente. Todas as construções seguintes “não alteram nem destroem as obras dos sécs. XVIII e XIX quando muito encobrem-nos sem as eliminar. O património existente encontra-se na sua forma original. A conservação do traçado do espaço envolvente – deambulatório, muros, jardins em patamares, lagos, tanques, fontes – é um dos maiores legados. Não é habitual, pelo menos nas quintas da região, que a organização espacial primitiva chegue aos dias de hoje”, adianta Carlos Sousa. 

Cirurgião do reino, Manoel Constâncio estava a par das correntes artísticas da época e transpôs para o Valle da Louza canais de irrigação e métodos de conservação da água utilizados nos jardins do palácio de Queluz. A quinta era o seu grande enlevo.

Alexandra e Carlos Sousa querem preservar essa memória e vão mais longe. Querem preservar o património ambiental. As veredas e os bosques, a flora e a fauna autóctones.

Para que tudo isto seja sustentável, a vinha tem que produzir vinho de qualidade e para isso trabalha um enólogo formado em Bordéus que acredita na qualidade do produto. A silvicultura será sempre uma mais valia e as áreas hortícolas serão ocupadas com plantas ornamentais e aromáticas para extracção de essências e condimentos.

“O processo de extracção guardamo-lo para nós, sabemos como se faz e a carência do mercado nestes produtos”, adianta Carlos Sousa. Recorde-se que os donos do Valle da Louza têm uma empresa na zona industrial de Abrantes, a STI – Sistemas e Técnicas Industriais, que para além de fornecer equipamentos e soluções para o tratamento de águas e lamas residuais, fornecem tecnologia e linhas de transformação de hortofrutícolas.

Acreditando que a sustentabilidade tem que assentar na “diferença da oferta” e na “fuga a produtos que fujam a conceitos de padronização e massificação”, Alexandra e Carlos Sousa recusam qualquer variante de turismo rural, mas propõem um “turismo de base cultural e de natureza”.

O núcleo construído nos séculos XVIII e XIX poderá ser alugado, mesmo em regime “semi-prolongado” para quem busque a tranquilidade e isolamento “quem esteja empenhado num trabalho académico ou literário, por exemplo”.

Para um público mais vasto projecta-se a criação de uma área de hospedagem na eira e provavelmente um campo de férias no espaço vizinho. “Mas não queremos massificar”.

E é visível o cuidado com que tudo é tratado, contrastando com um tempo em que o imediatismo e a aparência balofa são reis e senhores.

Parcerias

O trabalho está apenas no início. A pesquisa histórica, a recuperação ambiental e patrimonial prosseguem e para tal foram e vão ser estabelecidas parcerias.

Com a Escola Solano de Abreu foi estabelecida uma parceria para restauro dos azulejos, refira-se que foi a própria escola a propor a parceria; com a Quinta do Côro e o Instituto Superior de Agronomia vai iniciar-se um trabalho de recuperação do corredor ribeirinho da ribeira da Louza, restabelecendo a fauna primitiva; e com a Protecção Civil um sistema de protecção contra incêndios, utilizando o anel de irrigação existente em torno do núcleo central da propriedade. 

“Armazenamos no inverno, para termos no verão e em qualquer ponto do anel circundante os bombeiros podem abastecer”. E há ainda um outro projecto: “criar um sistema de nebulização que provoque o arrefecimento nos dias estivais”.

Enfim, nada foi deixado ao acaso, num investimento que pela sua interligação tropeça na burocracia dos apoios. Num tempo em que tanto se fala em projectos integrados, os organismos oficiais continuam a não ter capacidade de resposta. É preciso dividir para cada parte seguir para um dos múltiplos departamentos. “Este é o nosso sonho, mas temos que o tornar sustentável. Vamos continuar e temos trabalhado sem recurso a apoios estatais”.

 

CARTA DE SANGRADOR

 

“Dom Carlos Lopes de Sousa e Dona Alexandra Lopes de Sousa venham até aqui. Quero-vos entregar um dos meus mais preciosos tesouros: A minha carta de Sangrador. Gostava que ficasse aqui na casa!”

O Grupo Teatro Palha de Abrantes, dirigido por Helena Bandos, teatralizou partes da apresentação do projecto de Alexandra e Carlos Lopes de Sousa para a Quinta do Valle da Louza.

De cima de um púlpito, um dos elementos do grupo, anunciou aos presentes o teor da carta de sangrador e do diploma de cirurgião de Manoel Constâncio. No final, assistiu-se à chegada do “dono” da casa, acompanhado do seu fiel caseiro João Bexiga, segundo um texto de Carlos Sousa. 

Era Novembro de 1783, Manoel Constâncio então com 57 anos, “perseguia, mais que nunca, a ideia de acabar a sua obra da quinta do Valle da Louza”. 

“Desde a Primavera que não ia à Quinta. 

Foram muitas as razões, a sua filha tinha nascido em Março e com uma saúde muito delicada, não ficou bem também a sua mulher depois do parto, a Rainha tinha cada vez mais achaques a que as sangraduras não acudiam, a clientela não parava de aumentar. 

Mas não podia adiar. Por algumas semanas as aulas de Anatomia teriam de prosseguir sem ele; bem que tinha preparado os seus alunos mais velhos para ajudar os mais novos e agora era a ocasião de comprovar a sua razão. 

Sendo assim não levaria Dona Joana, a sua mulher, só o seu criado Francisco, que o servia fielmente desde o terramoto, sempre reconhecido pela cura que, o agora lente de anatomia, lhe tinha sabido fazer”. 

João Bexiga relata-lhe a azáfama da quinta, o vinho que “está pronto para o senhor provar e levar na volta para Lisboa”. Mas Manoel Constâncio antecipa-se: “Então não passa de hoje… vai ser ao jantar… mas antes, convidamos estes senhores para nossa casa, porque quero entregar uma coisa à família que mora hoje na casa que construí”. 

A assistência acompanha os figurantes para a entrega da carta de sangrador a Alexandra e Carlos Sousa pelo “próprio” Manoel Constâncio: “Dom Carlos Lopes de Sousa e Dona Alexandra Lopes de Sousa Venham até aqui. Quero-vos entregar um dos meus mais preciosos tesouros: A minha carta de Sangrador. Gostava que ficasse aqui na casa!”

O documento emoldurado foi trabalhado e restaurado a partir do original – que se encontra em bastante mau estado – por Luís Reis, professor da Escola Solano de Abreu e ficará exposto na casa primitiva de Manoel Constâncio.

Depois seguiu-se o jantar com a prova do vinho novo. 

 

O REFÚGIO DE BOCAGE

 

Manuel Maria du Bocage (1765-1805), o poeta maldito ou poeta da liberdade, refugiou-se na Quinta do Valle da Louza, na sua primeira fuga ao Intendente Pina Manique, cioso de o mandar para o Limoeiro, por causa dos escritos “Verdades Duras”.

Vivia-se o ano de 1797, Bocage tinha 32 anos e era amigo e companheiro de boémia de dois dos filhos de Manoel Constâncio, Pedro e Joaquim. A amizade levou-o a casa de Constâncio, na rua do Loreto.

Aberto às novas correntes e pró-francofono, Manuel Constâncio acolheu Bocage e permitiu que se escondesse na sua quinta. Um espaço exíguo, mais comprido do que largo, onde cabe uma enxerga e pouco mais, escondido no sótão e cuja porta era um armário de fundo falso, foi o refúgio de Bocage durante algum tempo. 

A luz vinha duma clarabóia já inexistente, o armário também já desapareceu, mas parte da alma do poeta teria ficado presa nas paredes caiadas.

Tanto mais que Bocage enamorou-se de Maria Margarida Rita, a única filha do cirurgião. O poeta conheceu a sua amada, tinha ela apenas 14 anos, ele já passara a casa dos 30, e ao que consta foi amor à primeira vista. Amores nunca consentidos por Manoel Constâncio, mas que Bocage imortalizou na sua “Marília”. Margarida fez sete anos de luto por Bocage.

Maria Margarida tornou-se dona da quinta, casou mais tarde com Braz Consolado, o “Tendeiro” e nunca tiveram filhos. Margarida morreu primeiro e por testamento a quinta passou para o marido. Este sim teve uma filha de uma “serva” chamada Emília, a quem deram o nome de Leonor Emília e que legitimamente herdou a Quinta do Valle da Louza.

Leonor Emília foi a mãe de Francisco Solano de Abreu e a quinta esteve nesta família até ser adquirida por Alexandra e Carlos Lopes de Sousa.

 

 PRIMEIRO LENTE DE ANATOMIA

 

Manoel Constâncio, filho de João Alves e de Josefa Marques, nasceu em Sentieiras (Abrantes) a 4 de Abril de 1726. Órfão de pai, aos 12 anos, e com mais cinco irmãos – ele era o segundo mais velho – foi pastor para ajudar o sustento da família. Iniciou mais tarde a profissão de barbeiro, ofício intimamente ligado ao de sangrador, aqueles que “sagravam, sarjavam, lançavam ventosas e sanguessugas”.

Ajudado pelo 2.º Marquês de Abrantes, D. Joaquim de Sá e Menezes Almeida, parte para Lisboa com 21 anos e aos 28 obteve a carta de sangrador, assinada pelo “Doutor António da Costa Falcão, Cavaleiro professo na ordem de Cristo, Médico da Câmara de Sua Magestade e Cirurgião Mor dos seus Reinos e senhorios de Portugal”. 

Manoel Constâncio continua os estudos no Hospital de Todos os Santos, é discípulo do francês Pierre Dufau, e destaca-se de entre os restantes alunos. Com 32 anos, em 1758, obtém o diploma de cirurgião assinado por António Costa Falcão e torna-se cirurgião da câmara real e cirurgião militar, acompanhando as tropas do marquês de Marialva na guerra dos Sete Anos.

Com a expulsão dos jesuítas, em 1760, os cirurgiões puderam começar a dissecar cadáveres humanos e aprofundar os estudos de anatomia. Manoel Constâncio continua a destacar-se na sua actividade e quatro anos depois torna-se o primeiro Lente de Anatomia português, substituindo o seu mestre Dufau. 

Aos 51 anos, casou com uma jovem de 22 anos, Joana Rita de quem teve quatro filhos: Francisco, Joaquim, Pedro e Maria Margarida, a amada de Bocage.

Continua a ser cirurgião do reino, mas sempre que lhe era possível fugia para a sua quinta, cujas obras iniciara em 1764 e onde falece, em 1817, com 91 anos.

Mas a quinta trouxe-lhe alguns conflitos familiares. Os filhos Joaquim e Pedro incompatibilizam-se com o pai por ali ter gasto grande parte do dinheiro ganho como cirurgião. Francisco, o mais velho, foi diplomata em Paris e Maria Margarida que acompanhou o pai, acabou por ser a herdeira da propriedade do Valle da Louza.

Segundo as pesquisas de Alexandra e Carlos Sousa, Joaquim e Pedro fizeram as pazes com o pai já no final da vida deste. Francisco Solano Constâncio, longe das guerras familiares, escreveu um epitáfio na morte do pai de que não existe nenhuma cópia em Portugal. O documento ficou guardado na biblioteca de Paris.

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