Home »
01 DEZ 2006
JOSÉ SARAMAGO: ATÉ SEMPRE
Por MARGARIDA TRINCÃO

 

“Continuo a ser o neto da Josefa e do Jerónimo que vivia no Casalinho”. José Saramago mostrou uma faceta mais escondida da sua personalidade. Na Azinhaga ele foi um homem emocionado.

 

A Azinhaga saiu à rua para ver o Prémio Nobel da Literatura, o seu escritor que nasceu na aldeia ribatejana a 16 de Novembro de 1922. Menino nascido numa família de parcos recursos num tempo em que se “confiava” mais nas crianças e elas “pareciam mais responsáveis”.

As memórias de infância iam ressurgindo entre um mar de conterrâneos e os flash das máquinas fotográficas e câmaras televisivas. Fotógrafos e jornalistas de todo o país e Espanha acompanharam José Saramago no seu regresso às origens.

“Se não fossem tantos, se estivessem aqui menos, já tinha chorado, mas são tantos que nem sequer chorar posso".

Saramago chegou de autocarro e desembarcou num cais de gente que o atropelava a cada instante. Chegou com grande dificuldade junto da banda Filarmónica 1.º de Dezembro e do Rancho Folclórico dos Campinos de Azinhaga.
Muito a custo foi aberta uma clareira e o escritor deu um curto pé de dança. A recepção foi em frente ao edifício da sede da junta de Freguesia. Lá dentro, num pequeno gabinete, o Livro de Honra da Azinhaga esperava a assinatura de Saramago. Impossível. Os fotógrafos não o deixavam romper a multidão. O programa teve que ser alterado e o livro com a folha em branco seguiu para o pavilhão da antiga SIC (Sociedade Industrial de Concentrados), a cerca de 200 metros da sede da junta. A festa era lá.

Beber a água do rio

Foram semanas de trabalho. A população mobilizou-se para homenagear o seu Nobel. “Agradeço a todos os azinhaguenses que tornaram possível a festa a este escritor que é azinhaguense, que é ribatejano, mas que é um escritor do mundo. Prontificaram-se a fazer comida, a limpar este pavilhão que desde 1990 não via uma vassoura”, recordava Vítor Guia, presidente da Junta. Fora dos portões, rodavam os porcos nos espetos.

A população começava a apinhar-se. O escritor chegava no meio de flashes. Amigos de longa data, figuras nacionais – Fernando Tordo, Carlos do Carmo ou Dias Lourenço - olhavam de longe, mas Otelinda Nunes não queria perder o seu lugar de amiga de infância de Saramago.

“Não esperava tanta gente, que o carinho fosse tão grande. Não está aqui a Azinhaga em peso, mas algumas casas estão desertas...” O homem de fisionomia fechada, deixava cair a dureza e recordava com a beleza do olhar, do amor sem palavras das figuras centrais do “Memorial do Convento” – Blimunda Sete Luas e Baltazar Sete Sóis – os tempos em que “bebia a água do rio sem que acontecesse nada”.

“Gostava de falar com estas crianças, gostava de lhes recordar o que aqui vivi entre os 4 e os 15 anos. A vida com os meus avós. Tenho esta idade. Sou avô, mas continuo a ser o neto do Jerónimo e da Josefa que morava no Casalinho.”

José Saramago deixou a Azinhaga com apenas dois anos, mas voltava sempre para passar as férias com os avós.
“Não sei se agora dão liberdade às vossas crianças. Dantes metia no alforge - não sei se ainda há alforges - meia dúzia de figos secos e uma fatia de broa, e ia por aí. A minha avó nunca me disse ‘não caias ao rio’. Havia confiança nas crianças e elas pareciam mais responsáveis”.

Neto de analfabetos, filho de mãe analfabeta e de pai que sabia ler e escrever, “o meu destino seria a enxada. Ficaria por aqui… Fiz o meu trabalho e é preciso confiar nos velhos. Não julguem os novos que nós estamos a cair da tripeça. Foi isto que aprendi quando tinha 8 ou 9 anos”, continuava José Saramago num palco colocado no meio do pavilhão da SIC, para onde foi transportada uma oliveira, um barco e muitos fardos de palha, cobertos de mantas, para servir de bancos.

“Esta é a melhor surpresa da minha vida”, confessava: “Tenho uma dívida para com a Azinhaga, não usei o meu tempo como era minha obrigação. Deveria ter vindo mais vezes... Prometo que me verão mais vezes por aqui. Com a junta e convosco vamos fazer algo. Não digo adeus, digo até sempre”.

 

MENINO DESCALÇO

 

“Tudo o que diz respeito a José Saramago me interessa”, afirma Pilar del Rio, mulher de José Saramago e a pessoa que o fez perder o ar “de menino triste”, no dizer de Otelinda Nunes, amiga de infância do escritor.

Pilar del Rio foi a responsável para que “As pequenas memórias”, livro de recordações de José Saramago fosse lançado na terra natal do escritor: “É óbvio que se o livro fala da infância e da meninice, deveria ser apresentado na data do seu aniversário e aqui na Azinhaga”, justifica, acrescentando: “Ele sempre fala das férias passadas em casa dos avós. Ele chegava tirava os sapatos e, durante três meses e meio – as férias eram muito compridas - era um menino descalço”.

“As pequenas memórias” é um projecto com vários anos. “Existe há quase 20 anos, mas com outro título – “O livro das Tentações”, esclarece Pilar del Rio, adiantando: “Mas esse era um título demasiado pretensioso, se bem que era a vida vista de pequenino. quando o mundo inteiro é uma tentação”.

Na Azinhaga, Pilar del Rio também se sente em casa porque tudo o que diz respeito a José Saramago lhe interessa. Segunda disse ABARCA, o casal visita frequentemente a Azinhaga, “sem ninguém saber” e só não o faz mais vezes porque nenhum dos dois conduz. “Mas quando apanhamos um amigo, vimos à Azinhaga”.

Pilar Del Rio quis mesmo comprar uma casa na terra do escritor: “Nessa altura, ainda estava de pé uma casa com grande significado na vida de José Saramago, mas fui parva contei-lhe e ele disse que não”.

A tudo o que tem que ver com Saramago “ele sempre diz não. Nunca quer molestar ninguém, diz sempre que dá muito trabalho. Mas esta festa foi uma alegria inesquecível para José Saramago...”

 

INESQUECÍVEL

 

“Julguei que não era possível. A minha mulher [Pilar del Rio] acabou a tradução na madrugada de quarta-feira e hoje quinta-feira a edição espanhola de ‘As pequenas memórias’ está aqui”, José Saramago mostrava o pequeno livro na presença da representante da sua editora em Espanha.

A edição, que “não poderá ser comercializada porque ainda não foi corrigida”, foi um dos presentes e “o mais surpreendente” que José Saramago recebeu na Azinhaga, no dia 16 de Novembro, data do seu 84.º aniversário.

Zeferino Coelho, da editorial Caminho, ofereceu-lhe um exemplar do primeiro livro que Saramago leu “A Toutinegra do Moinho”, de Émile Richebourg.

José Saramago recebeu também presentes da Junta de Freguesia da Azinhaga. Um retrato seu e diversas gravuras a carvão, representando cenas tradicionais ribatejanas, da autoria do pintor azinhaguense Serrão de Faria.

A sessão de lançamento de “As pequenas memórias” contou ainda com a interpretação de canções do disco “Nesta Esquina do Tempo”, com poemas de José Saramago, interpretados por João Afonso, Luís Pastor e Lurdes Guerra.

(0) Comentários
Escrever um Comentário
Nome (*)

Email (*) (não será divulgado)

Website

Comentário

Verificação
Autorizo que este comentário seja publicado



Comentários

PUB
crónicas remando
PUB
CONSULTAS ONLINE
Interessa-se pela política local?
Sim
Não
© 2011 Jornal Abarca , todos os direitos reservados | Mapa do site | Quem Somos | Estatuto Editorial | Editora | Ficha Técnica | Desenvolvimento e Design