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01 DEZ 2006
GERTRUDE MOOSMAIER: FUGIR À GUERRA
Por SÓNIA PACHECO

 

Nasceu na Áustria, viu o seu país ser um dos palcos da II Guerra Mundial e, ainda criança, refugiou-se em Portugal. Hoje, na sua casa em Amoreira, Rio de Moinhos (Abrantes), Gertrude Moosmaier recorda o medo que assombrou a sua infância.

 

Sentada numa velha cadeira de madeira, as lágrimas corriam agressivas pelo seu rosto. A mãe de Gertrude segurava na mão a carta que anunciava a morte do seu marido. Morreu em combate. O calendário pendurado na parede ao lado anunciava o ano de 1942 e um pesado silêncio abateu-se sobre aquela casa austríaca. Escrita pelo Capitão, a carta terminava com a saudação hitleriana “Ei Hitler”.

“Como se o meu pai tivesse morrido por uma grande causa”, lembra Gertrude Moosmaier que, na altura, tinha apenas três anos. “O meu pai salvou muitos colegas da morte, mas quando foi buscar mais um, foi ele que lá ficou”.

É esta a primeira de muitas histórias que Gertrude recorda agora, aos 67 anos, na sua casa, em Amoreira, Rio de Moinhos, onde vive há 44 anos.

Natural de Seefeld, Baixa Áustria, nasceu a 14 de Março de 1939. Seis meses depois rebentou a II Guerra Mundial. “Lembro-me perfeitamente da guerra”. Gertrude guarda na memória lembranças de momentos dramáticos vividos no seu país natal transformado em palco de guerra.

“Lembro-me de morar em Viena e a cidade ser bombardeada e nós fugirmos para os abrigos”. Assim que as sirenes tocavam, corriam para os abrigos e esperavam que os bombardeamentos terminassem. A espera era longa e as conversas deixavam Gertrude apavorada. Só se falava morte e a mãe tentava reconfortar os filhos, Gertrude e o irmão, dizendo-lhes que nunca morreriam. Mas uma vez, quando regressavam a casa, viram que a habitação vizinha tinha sido completamente destruída.

Mais tarde, foram viver para casa da avó materna, em Seefeld. Um dia, estavam na sala de jantar e, de repente, entraram quatro soldados com camisolas vermelhas. Tiraram os casacos e ordenaram que queriam comer. “Com grande brutalidade partiram logo uma das cadeiras e riram-se à gargalhada”. Discretamente, Gertrude, a mãe e o irmão saíram e esconderam-se nas vinhas até que a avó os chamou. 

A cidade, o país e o mundo estavam envoltos numa neblina de terror. Pelas ruas passeavam camiões cheios de soldados que pegavam nas telefonias e estragavam-nas para que a população não soubesse de nada. E se alguma coisa lhes agradava, pegavam nela, levavam-na e ninguém podia refilar. Dentro das casas reinava o medo e o pânico de morrer. “As minhas primas tiveram que cortar os cabelos à rapaz e vestirem-se de rapazes para que os soldados não olhassem para elas”. Durante a guerra a comunidade estava unida e cada um tentava ajudar o outro. Mas “andávamos sempre a fugir de um lado para o outro. A Áustria ficou uma miséria”.

Aos seis anos entrou para a escola. A mãe só a foi levar da primeira vez para que aprendesse o caminho. Várias eram as dificuldades. O frio era tanto que para conseguir escrever era necessário fazer exercícios com as mãos e na rua era obrigada a fazer a saudação hitleriana cada vez que passava pelos soldados. Gertrude recusava-se e a mãe tentava assustá-la para que cumprisse tal preceito. “Tenho vergonha de dizer que aquele homem é austríaco”, afirma Gertrude referindo-se a Hitler.

A mãe era porteira do prédio, recebia os boletins do racionamento emitidos pelo governo hitleriano. Quando se ia às compras, os comerciantes serviam as pessoas de acordo com o escrito no papel. Habitualmente, era Gertrude, ainda criança, que distribuía os boletins pelas famílias do prédio. Tudo era racionado. “Ás vezes, eu dizia à minha mãe que queria mais pão, mas já não havia”. Quando ia buscar o leite bebia-o quase todo pelo caminho e os torrões de açúcar escondia-os debaixo da almofada. O dia a dia era uma luta constante pela sobrevivência.

O tempo passava e Gertrude estava cada vez mais doente. Aos nove anos, “era só ossos por todo o lado”. A mãe foi à Igreja saber as viagens que restavam. Queria que a sua filha fosse para Holanda, mas já não havia lugares. A única hipótese era uma estadia de nove meses em Portugal. “Eu quis vir para cá na ânsia de sair daquele mundo”. A viagem, de comboio e de barco, durou três dias. Gertrude não esconde o medo que sentiu.

A menina, de tranças, chegou a Lisboa e, com a identificação ao pescoço, foi acolhida por uma família de posses. Nove meses depois regressou à Áustria e ficou outra vez doente. Pouco tempo passou e, já com dez anos, voltou para casa da mesma família de acolhimento.

Em Portugal, era acompanhada por uma senhora, também ela austríaca, que conhecendo a guerra ajudava Gertrude a escrever à mãe. Só podia contar os passeios que dava ou o que fazia na escola. Tudo o mais era proibido. “Sentia falta de certas coisas que fazia lá. Na Áustria, estava habituada a arrumar a casa…” Mas era da família que sentia mais falta. 

As marcas da guerra acompanharam-na sempre nas suas viagens para Portugal e “até foi difícil perceber que vivia em paz”. Gertrude lembra-se que, quando ouvia um avião, escondia-se debaixo da cama ou dentro do armário e, ainda durante muito tempo, teve “pesadelos horríveis” por causa da guerra.

Conheceu o seu marido, sobrinho do pai adoptivo, e aos 22 anos casou-se no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa. Um ano depois, visitou a Áustria. “Oh minha filha eu pensava que já nunca mais te via”, exclamou a sua mãe ao abraçá-la novamente ao fim de 13 anos. Foi com a mãe que aprendeu o gosto pela música e pela dança. Gostava de ter dado aulas de Francês, tinha habilitações, mas: “para pertencer a esta família de posses, tinha de ser dona de casa”.

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