No Largo da Imaculada Conceição mora um café, um restaurante, que acompanha as gentes da Golegã na sua história há 59 anos. Dona Conceição, fundadora e proprietária do estabelecimento, é a simpatia em pessoa. Mas também é tenacidade, coragem e a imagem de uma visão. Essa visão expressa-se hoje no coração da vila ribatejana
Aos 85 anos, D. Conceição mostra uma vivacidade imensa que lhe permite relembrar a história do Central, como é comummente chamado, com nostalgia e tenacidade, envolta num misto de saudade e alegria. O Café Central comemora 60 anos de existência no dia 19 de Maio de 2011. Desde a sua fundação muitas foram as alterações que decorreram ao longo da história, no país e no próprio café. É um privilégio serem-nos contadas por quem atravessou os tempos no ventre dessa mesma história.
“Lembro-me bem da inauguração do café. Na noite do dia 19 de Maio de 1951 o largo estava cheio de gente só que ninguém podia entrar. Tínhamos de esperar que o presidente da Cãmara, o Capitão Castro, chegasse, bem como o juiz da terra”. Foi inaugurado às “10 horas da noite”. “Ficaram muito admirados com o lambrim em corticite mas eu e o meu marido apostámos forte no café. A Golegã era muito fria e húmida e a corticite muito cara”. Quem viu fi cou admirado e desejou boa sorte. Na altura apenas existia um café na vila, o Estrela d’Ouro. Curiosamente foi também o seu marido, António da Silva Brogueira, que o fundou.
Na altura em que Conceição e António, dois jovens goleganenses, decidiram apostar no café, o edifício no Largo da Imaculada Conceição albergava “uma farmácia no rés-do-chão, a farmácia Gambini, e no primeiro andar a Sociedade da Flôr”. Na altura a negociação com o proprietário da farmácia foi complicada e foi a tenacidade e boa disposição de Conceição a desbloquear o processo de trespasse. “O meu marido chegou a casa e disse-me que o alemão [o proprietário da farmácia era alemão] lhe tinha dito que não podia fazer por menos. Disse logo ao meu marido que íamos lá os dois e que eu é que conversava com ele”. Aí Conceição usou da sua energia e disse-lhe “o senhor é rico e nós estamos a começar, damos-lhe 50 contos! O senhor faz a farmácia em casa e tem sempre o remédio vendido, só tem de descer de roupão e vender”. A simpatia que Conceição sempre granjeou entre as gentes da Golegã estendia-se ao ‘alemão’ que haveria de se virar para António e dizer “já viste, o que tu não conseguiste conseguiu ela!”.
Muitas são as histórias que Conceição tem na memória, à espera de um sinal para saltarem cá para fora. Muitas foram, também, as feiras de São Martinho que o Central já viveu, 59. Em tão extenso período a feira passou por ali, inúmeras vezes, seja pela mão dos negócios, dos toureiros, cavaleiros e visitantes. Para muitos, do país e não só, o Central é referência na passagem pela lezíria ribatejana. É-o durante a feira mas também fora dela, durante todo o ano, todos os anos. “Durante a feira as minhas primas é que vinham para cá servir refeições na tertúlia, no rés-do-chão do Central. Por aqui passaram as grandes figuras do toureio e do mundo diplomático”. A feira está diferente para Conceição, não negativamente, apenas diferente. “No meu tempo havia burros, vacas, carneiros, cabras. Sempre foi um acontecimento muito grande na Golegã”. Os novos tempos e as novas tendências não a deixam toldada de opinião. “Não havia discotecas dantes mas não me incomoda nada! A juventude deve ter algo com que
se entreter”.
Nos muitos dias de São Martinho em que o Central abriu as portas “vinha aqui comer a fina-fl or dos negociantes, pessoa dos cavalos. Mas ainda hoje se fazem aqui negócios! Estão à vontade, podem falar de tudo, ninguém os
incomoda”. Também os toureiros eram presença habitual no estabelecimento. Aliás, foram os toureiros a emprestar o nome a uma das delícias que Conceição tinha e tem à venda no café. “Os toureiros é que um dia pediram para chamar ‘toureiros’ aos meus bolos de amêndoa. O António dos Santos, José Agostinho, Manuel dos
Santos… “. Os ‘toureiros’ são pequenos bolos de amêndoa. “Ovos, amêndoa, açúcar e… mais não digo” esboçando um grande sorriso. O segredo é a alma do negócio e do paladar. A receita das pequenas delícias de amêndoa foilhe trazida por Manuel Gonçalves que uma vez lhe levou o bolo quando estava doente. O mesmo segredo serve para o molho à Brogueira que é marca do estabelecimento e que leva muitos clientes a escolherem o Central para almoçar ou jantar. “Foram os pára-quedistas de Tancos que deram nome a esse molho. Vieram cá comer uma vez e servimos-lhes o molho com os bifes. Um dia vou ao telefone e disseram “Queremos bifes á Central com molho à Brogueira”. Simples.
D. Conceição assinala muitas vezes que tem muitos amigos e que sempre teve essa sorte. Afirma também, emocionada, que os fregueses sempre gostaram muito dela e do marido, falecido há 37 anos. No restaurante está uma foto do casal do Central, Conceição e António, mensagem de união e símbolo das fundações sobre as quais o Central fez a sua história. “Na foto tínhamos 10 anos de casados”. “Eu dedico-me muito às coisas, dediquei-me muito a isto” diz emocionada, ela que foi quase tudo nestes 59 anos de vida do Central. “Passei muitos anos na cozinha, ensinei tudo à minha afilhada”. “A primeira coisa que me ofereceu foi um livro de cozinha Pantagruel” de Maria de Lurdes Modesto. Foi também relações públicas, termo moderno que no passado não se utilizava muito mas que ainda hoje Conceição ostenta revelando o mesmo à vontade que diz ter sido imagem de marca ao longo dos anos. “Há alguns anos andava um empregado a servir na tertúlia, cabisbaixo, e eu perguntei-lhe o que é que ele tinha, que queria uma cara alegre. Não percebo os clientes, dizia ele, pedem coisas e depois não as querem! Eu disse-lhe logo que ia lá ter com eles. Fui e ao fim de algum tempo já me estavam a pedir desculpa e a dizer que cada vez que viessem à Golegã que passavam pelo Central. Eu só dizia que era preciso ter paciência, que os rapazes tinham muito trabalho. Sempre gostei de receber pessoas”. As histórias dos 59 anos do Central são muitas. Ficam aqui algumas. “Uma vez chegou aqui um senhor que pediu ao meu marido para dar um grito à Tarzan dentro do café (risos). Ficámos surpreendidos mas ao fim de algum tempo levámo-lo para a tertúlia, fechámos as portas e ele deu o grito. Era igualzinho ao do Tarzan!”. Durante a feira havia também o caso de “Chico Mendes, que estava hospedado na pensão que havia em frente ao Central e que depois do jantar nos vinha pedir para lhe fazer comida porque a da pensão não lhe chegava” ou o sobrinho de 11 anos que um dia “chegou ao pé do capitão Castro e diz “o senhor carioca quer um capitãozinho?””.
É de histórias que se faz o Central, de boa gastronomia, de família e amigos e Conceição repete incessantemente a importância que os seus “muitos” amigos têm. Repete também a emoção de quem olha para trás e relembra momentos que a marcaram como “quando os militares iam para Angola e se vinham despedir à tertúlia. O meu marido apagava as luzes e punha canmdeeiros de petróleo. Eu adormecia a ouvir fados e guitarradas”. “Tivemos muita sorte” diz Conceição, bons amigos”. O Central ocupa hoje todo o edifício, o seu nome é conhecido e a sua qualidade reconhecida. Os amigos são muitos. “A minha sobrinha diz que estou a colher aquilo que semeei”.