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08 ABR 2010
MEMÓRIAS
Por LUÍS MANUEL GONÇALVES

 

Guardo na memória muitas recordações dos meus tempos de “menino e moço” relacionadas com a Procissão dos Passos do Senhor e com a Semana Santa na Vila de Sardoal, tão vivas como se tivessem acontecido ontem, apesar de já terem passado mais de 50 anos sobre os acontecimentos que as motivaram.
A Procissão dos Passos era, então, realizada na tarde da sexta-feira que precedia o 2º domingo antes da Páscoa e que coincidia com o início das férias escolares, o que, por si só, já constituía um acontecimento, até porque já não havia aulas, sendo a manhã destinada às confissões dos alunos, um acto quase obrigatório, em que a maioria usava toda a espécie de artimanhas para poder ser confessado pelo saudoso Padre Matias, de Santiago de Montalegre, cujas confissões eram as mais rápidas e que era o sacerdote mais generoso na aplicação das penitências e em que se realizavam autênticos concursos para ver quem era mais rápido a rezar os “Padre Nossos e Ave-marias” que lhes eram aplicados no confessionário.
Nesse tempo ainda se realizavam, nas aldeias do concelho de Sardoal, muitos sorteios de “Comadres e Compadres” e era em Quinta-Feira Santa que os rapazes ofereciam as amêndoas às respectivas “Comadres” e seria muito curioso dispor, hoje, de elementos documentais que permitissem determinar as quantidades vendidas pelo comércio da Vila de Sardoal nesse dia, normalmente de forma avulsa, que as “amêndoas francesas empacotadas eram um luxo a que a maioria das bolsas não tinha acesso...
Também a venda de velas era feita em grande quantidade, uma vez que eram raras as pessoas, especialmente mulheres e crianças, que não utilizavam uma para acompanhar a Procissão do Senhor da Misericórdia, hoje mais conhecida por “Procissão dos Fogaréus”, designação que tanto se pode ficar a dever ao facto de as partituras musicais usadas pela Filarmónica União Sardoalense serem iluminadas pela luz dos archotes, como à grande quantidade de velas que acompanhavam a Procissão, com um efeito estético inesquecível, aumentado quando se incendiavam os resguardos de papel que protegiam a chama dos efeitos do vento ou, ainda, ao grande número de lanternas colocadas nas varandas, janelas e sacadas, ao longo de todo o percurso.
Das Cerimónias Litúrgicas de Quinta-Feira Santa, Dia de Endoenças, da minha meninice, a imagem mais nítida que guardo é da Cerimónia do Lava-Pés, talvez porque não entendesse a razão de o Sacerdote lavar um pé aos Irmãos do Santíssimo, circunspectos e imponentes com as suas opas vermelhas.
Só muitos anos depois fui capaz de entender a simbologia daquela cena, estranha para mim na altura, em que se pretende vincar a humildade de Jesus Cristo, Filho de Deus, feito Homem.
Outra imagem desse dia que guardei ao longo dos anos foi a do Sermão do Mandato, proferido na Igreja de Santa Maria da Caridade, em que, anualmente, só entrava nesse dia e em Sexta-Feira Santa, quando por lá passa a Procissão do Enterro do Senhor, sendo o túmulo de D. Gaspar Barata de Mendonça, 1.º Arcebispo da Baía e Primaz do Brasil, o enigmático monumento funerário que durante dias seguidos alimentava a minha imaginação infantil. O corpo ainda lá estaria? Como estaria vestido? E, se ele abrisse o túmulo e se levantasse durante o Sermão, qual seria a reacção das pessoas?
De Sexta-Feira Santa, guardei fragmentos da Cerimónia do Enterro do Senhor: o toque a Trevas, o acto do Enterro e, de forma mais nítida e persistente, o momento em que se cobriam as Imagens e tapavam as janelas com panejamentos roxos ou negros, tradição que foi profundamente alterada com o Concílio Vaticano II.
A associação deste cenário de obscuridade e recolhimento, com a luminosidade e colorido da Matriz, em Domingo de Páscoa, causava-me, então, uma indescritível sensação de alegria e liberdade que nunca fui capaz de compreender bem.
Mais tarde, naquele período da adolescência em que procuramos respostas para todas as dúvidas, coloquei muitas vezes, a mim mesmo, a questão de conhecer as razões que motivavam tantas pessoas a deslocarem-se a quilómetros de distância, quase sempre a pé, com o regresso durante a noite, para participarem, com veneração e recolhimento, nos actos de culto da Semana Santa do Sardoal. Foi então que descobri, com a ajuda de Santo Agostinho e S. Tomás de Aquino, o significado da palavra Fé e percebi que os sentimentos religiosos são uma parte intrínseca da natureza humana, indissociável da vida dos homens, independentemente do grau e dimensão das suas crenças, como percebi, também, que a solidão se pode sentir, mesmo quando estamos rodeados por uma multidão, quando interiorizamos o ambiente místico que nos envolve e nos alheamos de todo o cenário, teatral ou não, funcionando como o único actor, interlocutor e espectador de um monólogo que só às vezes se transforma em diálogo, neste palco espiritual, em que se sente a presença de uma força superior que emana de Deus ou de um outro ser sobrenatural em que acreditemos.
Para mim é neste aspecto místico e espiritual que se podem encontrar as razões que motivam, ainda hoje, centenas ou milhares de pessoas, a participarem nos actos religiosos da Semana Santa, de uma forma afectiva e efectiva, apesar de as motivações religiosas e sociais serem substancialmente diferentes do que eram há cerca de quarenta anos.
E se esta não for a explicação correcta desafio cada um dos leitores a tentar descobrir outra. Para a encontrar terão de se deslocar à Vila do Sardoal, nestes dias em que a Fé e a Tradição, demonstradas ao longo de séculos, marcam presença, sentindo, também, que até nos momentos de profunda espiritualidade e religiosidade, motivadores de uma vivência colectiva singular, “no Sardoal ninguém é de fora!”.

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