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01 JUN 2018
Heroínas e teimosas
Por Jornal Abarca

Neste mês de Maio, igual aos de outrora no luzimento das novidades vindas das hortas e pomares, desigual dadas as transformações sociais e consequentemente de acessos a bens alimentares frutos da globalização, finalizei um trabalho de auscultação de dezenas e dezenas de pessoas maioritariamente octogenárias e nonagenárias sobre as práticas culinárias e usanças artes de transformar produtos agreste em comeres capazes de regalarem os palatos de Anjos, Arcanjos e Demónios, pois os Diabos e Diabretes também desempenhavam papéis quantas vezes nefastos ou malignos, por isso na botânica surgem plantas cognominadas do Diabo.

Neste trabalho surgem homens e muito menor número e na esmagadora maioria a conceberem comeres de ocasião, raramente sistemáticos, lambareiros, raramente muito elaborados. São as Avós e as Mães as grandes protagonistas, na ausência das sistemáticas couves descobriam cagarrinhos, saramagos, mostarda e papoilas a entrarem em caldos, sopas, saladas e pastelões, substituíam o mais oneroso grão-de-bico pelo feijão seco, porque a carne de vaca só entrava na mesa dos possidentes, criavam substanciosos comeres à base de carne de carneiro (imprescindível nos casamentos), da multiplicada galinha (velha) corada no Natal e na Páscoa, em canjas dos dias de festa, dadas a mulheres paridas e pessoas doentes, sem esquecer aves todas as condições, até cegonhas, e lautas arrozadas de pardais de telhado. Os pardais atacavam sem dó e piedade, por isso um dos relatos mais pungentes que registámos é o de um senhor que aos sete teve o seu primeiro trabalho – espanta pardais – nos terraços de arroz. O menino trazia uma lata-tambor presa por um fio à volta do pescoço, sendo obrigação espantar os pardais e pardocas batendo na lata com dois pauzinhos. Assim foi, o horário principiava ao ver surgir o dia e acabava no seu desaparecer.

Aquelas mulheres disseram-me que existia grande abundância de peixe nas valas, um cesto, um guarda-chuva virado ao contrário, uma rede curta ou simplesmente à mão significava apanha de barbos, enguias, fataças, pardelhas, ruivacos, sarmões, na época sabogas e sáveis, amenizando estes peixes as carências, já no tocante às lampreias o mais usual era serem vendidas.

As pessoas trabalhavam horas a fio, muitas iam para o campo e lá dormiam e faziam a comida cujas provisões, o cambariz e a caldeira levavam com elas. E, assim, surgiu o magusto, o torricado, o requentado, a massa à barrão e caldos de várias representações de elementos tradicionais.

O queijo só o de fabrico local, uma mulher a cavar vinha viu-se obrigada a satisfazer uma necessidade, no rebuço da saia amarfanhada levava um bocadinho de queijo, desastrada ou desatenta verificou que o raro mimo tinha caído no xixi, não o podia perder, apanhou-o, uma sopradela e depressa o mastigou evitando nova queda no chão.

Nada se podia perder, as sobras deram (ainda dão) azo a receitas como as esmagas, as embrulhadas, os esparregados, os pastelões, as empadas, as omeletes, as açordas, as migas, as papas, os bolos para enganar os tolos, as açordinhas para os meninos de colo e os idosos desdentados, ainda os comeres de pesar quando faleciam membros das Comunidades.

Doces e lambiscos poucos e apenas no ditos dias nomeados, imperava o arroz doce e várias versões, as ferraduras, os bolos secos, de vez em quando o pão-de-ló, raramente os pudins oriundos da cozinha urbana e burguesa.

As mulheres inventoras e multiplicadoras da cozinha rural aliavam a teimosia ao esforço de conseguirem alimentos, engenhosas de frutos caídos e em fase de adiantada maturação passavam à condição de compotas, geleias e marmeladas, os figos de maio volume secavam-nos ao sol, secos auxiliavam o amaciamento da aguardente nos mata-bichos, servindo-a à farta no dia da grande festa – a matança do porco – o milagreiro enquanto durava. O papel de porco na alimentação dos ribatejanos é elemento matricial, sendo os enchidos e toucinho os principais responsáveis por retirarem aflições às teimosas mulheres. Não se curavam os presuntos, faziam-se chouriços, linguiças, morcelas e farinheiras, a maior parte dos presuntos trocavam-se por mantas de toucinho porque aquela gordura branca, leitosa ou rançosa durava mais e dava gosto e substância às magias das heroínas e teimosas.

Para elas as minhas homenagens.

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