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06 NOV 2018
O "Senhor Extraterrestre"
Por Jornal Abarca

Carlos Paião comemoraria 61 anos, no dia 1 de Novembro. Um brutal acidente rodoviário, perto de Rio Maior, tirou-lhe a vida ainda jovem. Fomos conversar com Jorge Esteves, o condutor da carrinha em que seguia o cantor, radicado no concelho de Tomar há 25 anos.

O primeiro contacto é feito por telefone e enquanto espero que do outro lado Jorge Esteves, 55 anos, atenda a chamada receio que a resposta seja uma recusa em falar no assunto. Afinal de contas estamos a pedir que recorde o amigo que morreu dentro da carrinha que conduzia. Os pensamentos são interrompidos e explico timidamente o que pretendo. Do lado de lá, uma surpresa: “Tudo o que seja para dizer bem do Carlos conte comigo”, afirma. O encontro acontece uns dias depois, na casa de Jorge e da mulher, Elsa, na Serra, concelho de Tomar.

O pai de João Silva, amigo de longa data de Jorge, pescava juntamente com o pai de Carlos Paião e isso possibilitou que a vida de ambos se cruzasse. Em 1981, o então vencedor do Festival da Canção, convida Jorge para trabalhar como seu técnico de som, dando início a uma relação que duraria sete anos. E como era Carlos Paião para quem conviveu de perto com ele? “Era uma excelente pessoa, humilde, sem vedetismos, dava-se com toda a gente”, exemplificando: “Uma vez na feira de São Mateus acabou o concerto e foi jogar matraquilhos com as pessoas”. Elsa reforça: “Ele adorava jogar matraquilhos”.

Detinha “um sentido de humor fantástico”, como as suas músicas o comprovam mas “era muito tímido, ao contrário do que parece. Os primeiros espectáculos foram um problema do caraças, ele fazia aquilo porque tinha de ser”, conta.

Paião formou-se em Medicina mas “não era médico”, diz Jorge entre risos. A música era a sua grande paixão, mas Elsa aprofunda a questão: “O Carlos era um poeta”.

Para lá da relação entre patrão e empregado, havia uma forte amizade. Quando instado a definir Carlos Paião numa palavra, não hesita: “Amigo. Mas se pudesse usar duas diria grande amigo”, esclarece com um brilho no olhar.

Jorge não duvida de que “ele hoje em dia teria muito sucesso”. Elsa acrescenta: “Era um génio”. Carlos Paião nasceu no dia de Todos os Santos de 1957, em Ílhavo. Se é unânime que partiu cedo demais, não é menos verdade que viveu à frente do seu tempo graças ao talento que trazia em si.

26 de Agosto de 1988
Foi um final de verão trágico em Portugal. No dia anterior tinham ardido de forma cruel os Armazéns do Chiado, em Lisboa. Ainda as cinzas se dispersavam no ar da capital quando Jorge Esteves, na altura com 25 anos, esperava na casa onde morava em Caxias, juntamente com Carlos Miguel, pela chegada de Paião. A viagem tinha como destino Penalva do Castelo mas foi interrompida a meio. “Achei-o esquisito naquele dia, estava muito murcho e pediu para eu levar a carrinha porque ia dormir”. Elsa fazia anos nesse dia e Jorge achou “estranho ele não se meter com ela porque estavam sempre na brincadeira”.

Era a última viagem da velha carrinha Datsun Urvan e, de facto, assim quis o destino. Paradoxalmente, Jorge que foi o único sobrevivente tem pouco para contar. “Na altura só havia auto-estrada até ao Carregado, lembro-me que quando entrei na estrada nacional tirei a t-shirt, estava um calor daqueles...”. Ao lado, Paião e Carlos Miguel iam a dormir, para nunca mais acordarem. “Só me recordo de o camião vir contra nós e depois acordar na berma da estrada, já com os bombeiros no local”, conta. Foi ali, sentado na berma, que avisou os bombeiros que a carrinha tinha mais dois ocupantes.

Por essa altura, Elsa chegava a casa vinda do supermercado. “O meu cunhado estava à minha espera e disse-me que eles tinham tido um acidente, pensei que tinha ficado viúva”. Nesse momento já o país chorava a morte do cantor, declarada logo no local do acidente.

Jorge seguiu para o hospital de Rio Maior, depois São José, São Francisco Xavier e Dr. José de Almeida. Soube da morte dos amigos após o funeral, por recomendação dos médicos. “A Elsa escondeume, disse que eles estavam em Vila Franca de Xira”, mas assume que desconfiava dessa versão. “Quando ela aqui apareceu toda vestida de preto percebi imediatamente o que tinha acontecido”, lamenta.

Apesar de, trinta anos volvidos, conseguir falar abertamente sobre o tema, manifesta marcas que nunca se apagarão. “Fiquei sem dois amigos”. Atenua-lhe a dor saber que não teve culpa do acidente e, sobretudo, que os familiares de Carlos Paião tenham compreendido isso. No dia do acidente Zaida, mulher do cantor, visitou Elsa com uma mensagem: “Diz ao Jorge que eu sei que ele não teve culpa nenhuma”. Um acto de sensatez que ainda hoje comove o casal: “Fabuloso, não é?”, questiona a mulher. Jorge e Elsa nunca mais voltaram ao local do acidente. Admite que “já pensei em lá voltar mas nem sequer sei bem onde é”, reconhece.

Para um verdadeiro fã do cantor, a conversa com o casal foi um privilégio, mas o relato dos acontecimentos deixam sempre uma dolorosa mágoa. Nasci três semanas após o acidente mas, garantidamente, naquela trágica tarde de sexta-feira chorei, ainda na barriga da minha mãe, a morte de Carlos Paião.

E Depois do Adeus?
De repente, a vida tinha mudado. “Quando tive o acidente fiquei sem nada para fazer”, admite Jorge. Podia ter continuado a trabalhar no mundo do espectáculo a convite de Cândida Branca Flor, que estrelou “Vinho do Porto, Vinho de Portugal” com Paião, mas preferiu afastarse. “Claro que essa decisão teve uma ligação com o que aconteceu”, reconhece.

Quando casaram, em 1984, fizeram a lua-de-mel na Ilha do Lombo, em Tomar, e voltavam todos os anos de férias, na companhia de Carlos Paião e Zaida. Em 1993, decidiram mudar de ares e instalaramse na Serra onde Jorge iniciou um negócio de aluguer e reparação de barcos. “Não me arrependo nada de ter vindo para aqui”, diz. O filho, Rodrigo, ali nasceu e tornou-se campeão nacional de juniores de wakeboard.

A vida seguiu, naturalmente, o seu rumo. “A Zaida ainda cá veio há muitos anos, mas a vida seguiu caminhos diferentes”. O casal não deixa esquecer a figura ímpar de Carlos Paião. Ouvem as suas músicas, cantam-nas em casa ou em karaokes, partilham-nas no facebook, mostram aos amigos coisas que grande parte do público desconhece. “É um orgulho ter conhecido o Carlos”, diz Jorge com evidente gratidão.

O legado
Carlos Paião foi o melhor artista em Portugal na arte de contar histórias a cantar. São inúmeras as canções cujas letras, as deliciosas rimas e as melodias, nos deixam com um sorriso no rosto a imaginar as histórias ali cantadas. São exemplos “Canção do beijinho”, “Eu não sou poeta”, “Ga-gago”, “Marcha do pião das nicas”, “Meia-dúzia”, “O foguete”, “Playback”, “P’rás sogras que encontrei na vida”, “Refilar faz mal à vesícula, mais o diabo a sete”, “Souvenir de Portugal” ou “Zero a zero”. Ao mesmo tempo, assinava baladas memoráveis, ainda hoje no imaginário dos portugueses como “Cinderela”, “Lá longe senhora”, “Lobo do mar” (dedicada ao seu pai), “Pó de Arroz”, “Quando as nuvens chorarem”, “Versos de amor” ou “Vinho do Porto, vinho de Portugal”.

Entre a sua herança estão dezenas de canções escritas para outros artistas, sobretudo para Herman José, como o hino de apoio à selecção de futebol “Vamos lá, cambada!”. Escreveu, também, para Amália Rodrigues o famoso fado “Senhor extraterrestre”, recentemente reinventado por Gisela João. O amigo lembra que “aquilo é um tipo de fado que se ouve muito agora, mas ele fê-lo há trinta anos”, sublinha. Escreveu ainda para António Mourão, Joel Branco, Cândida Branca Flor, Alexandra, Lenita Gentil, Vasco Rafael ou Luís Arriaga. Isto tudo em apenas trinta anos de vida.

“Tinha uma qualidade muito grande, além disso era das pessoas mais inteligentes e cultas que conheci na vida”, diz Jorge. Um dia, relata, “disse-nos vou ali fazer uma música para ganhar” o Festival da Canção Portuguesa de Temática Histórica, na Figueira da Foz. Num ápice escreveu “Pró Fide, pró Pátria, pró Regae”, um resumo bem humorado da história de Portugal. E venceu o concurso.

Desafiados a eleger uma música do artista como a preferida, o casal é unânime: “Uma? Não dá!”. Mas Jorge lamenta que, com um espólio tão rico, se recordem apenas temas como “Cinderela”, “Playback” ou “Pó de Arroz”. Considera por isso que Paião “poderia ser mais honrado” e lamenta que “a maior parte da malta não consiga compreender o Carlos”.

Como exemplo maior dessa incompreensão dá-nos a sua visão dos dois álbuns de Paião. O primeiro, lançado em 1982, chamava-se “Algarismos”: “Se você reparar, as músicas do álbum vão do zero ao nove”, atenta. De facto, assim é: começa com a canção “Zero a zero”, passa por canções como “Não há duas sem três” ou “Meia-dúzia” e termina com “Noves fora…”. Perfeccionista, nenhum pormenor era deixado ao acaso.

Sobre o álbum “Intervalo”, lançado um mês após a morte do artista, Elsa tem uma visão mais profunda. “Parece a despedida dele. A música “quando as nuvens chorarem” parece ele a despedir-se de nós. E sabe uma coisa? Apesar do calor, choveu ao final da tarde no dia do acidente”, conta. “Foi um bocado assustador ligar isso tudo”. Em 1987, no programa “Com pés e cabeça”, despede-se com a célebre frase: “até qualquer dia, que da vossa simpatia nunca mais me esquecerei”. Na semana antes do fatal acidente, numa viagem de regresso do Alentejo, Paião falou insistentemente sobre a morte: “Eu sei que nunca vou morrer, fico por aí”. Tinha razão. Ficará, eternamente.

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