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04 NOV 2019
Alcanena, a terra para onde as aves já não voam
Por Jornal Abarca
Alcanena vive um problema ambiental grave. Nos últimos meses, os maus cheiros têm-se intensificado e há relatos de pessoas com sintomas que podem estar relacionados com a questão. O MSA, movimento de cidadãos recém criado, visa acabar com o problema.   

Fechar as janelas e portas de casa em dias de calor, viajar de carro numa tarde de sol com os vidros fechados ou fazer do ambientador o utensílio mais usado pode parecer anormal para quem não vive em Alcanena mas para os cidadãos do concelho é algo que se tornou natural. A explicação está nos maus cheiros constantes que afectam a população há várias décadas com uma reincidência forte nos últimos meses. 

É neste contexto que surge o Movimento pela Saúde de Alcanena (MSA) que procura “apenas encontrar soluções para o problema”, como nos diz Maria José Ferreira, 45 anos, e porta-voz do movimento. Com ela estão Carlos Vala, Sofia Ferreira, Elisa Alves e Pedro Caetano, todos na faixa etária entre os 45 e os 55 anos e a viver ou a trabalhar em Alcanena. O encontro com o jornal Abarca dá-se à noite, porque os membros do movimento trabalham de dia, e numa data particularmente crítica em que facilmente se detecta o odor que invade a vila. Maria José explica-nos que “o Movimento surgiu exactamente por causa deste cheiro persistente todos os dias, mais forte durante a noite, desde final de Agosto”. A causa principal é o tratamento dado pelas empresas de curtumes do concelho aos efluentes mas garantem que não estão contra a presença da indústria: “as fábricas não são incompatíveis, têm é de cumprir com as regras do jogo”, esclarecem. 

O que move o MSA, afiançam, é a saúde pública. Garantem que os sintomas “começam a aparecer nas pessoas” e questionam se “é crime querer uma vida melhor aqui?”. Elisa Alves, atleta e instrutora de fitness, relata o resultado da sua ida ao hospital nessa tarde: “O médico foi claro em dizer que isto é por causa da poluição, disse que tenho um pulmão em sofrimento” sublinhando que “estou aqui há 3 meses e não tenho dúvidas de que os problemas respiratórios que sinto estão relacionados com isto”, enquanto Sofia Ferreira fala de “olhos a arder, garganta queimada e dores de cabeça constantes”. 

Outros sectores são afectados por esta fraca qualidade ambiental como “a compra e venda de casas onde poderá existir uma desvalorização imobiliária, o comércio, a contaminação dos solos ou o turismo”, adiantam. “Os estores estão sujos com uma poeira vermelha” queixase Pedro Caetano que se mostra alarmado: “Só quando morrer alguém por causa disto é que fazem alguma coisa”. Maria José questiona: “para ter qualidade de vida tenho de arrendar uma casa fora daqui?”. De facto, atrair pessoas seja para turismo ou residência pode tornarse complexo: “Tenho amigos do Entroncamento ou dos Amiais de Baixo que vêm cá e me perguntam como é que consigo viver aqui” diz Maria José, enquanto Pedro Caetano presenciou “peregrinos que pernoitaram em Alcanena pelo 13 de Outubro e diziam que isto era insuportável”. Os membros do MSA concluem que “se paga um preço muito alto por sermos a Capital da Pele. Andamos a fazer disto uma bandeira mas o que é que as pessoas beneficiam com isso? Prejudicamos a saúde pública, o desenvolvimento sustentável e promovemos a mão-de-obra precária”, reclamam.

A raiz do problema é incerta. Sofia Ferreira esclarece: “Quando foi feita a requalificação dos colectores gastou-se muito dinheiro para as fábricas terem unidades para tratar os sulfuretos. Só depois de tratados podiam ser enviados para a ETAR, mas desconfiamos que isso não está a ser feito”. Alertam ainda que nos estatutos da Associação de Utilizadores do Sistema de Tratamento de Águas Residuais de Alcanena (AUSTRA), consta que “as águas com sulfuretos devem ser descarregadas entre as 00h e as 05h” mas que “provavelmente as fábricas não têm capacidade para isso e fazem descargas fora dessas horas, existindo a possibilidade de essas águas se misturarem com outras, reagem e provocam estes odores”. Pedem mais rigor na fiscalização do cumprimento das normas e lamentam que uma indústria que produz com selo de qualidade para marcas nacionais “não traduza isso na qualidade ambiental do concelho”.

Maria José Ferreira lamenta que tenha de “ser um grupo de cidadãos a tentar resolver o problema”, enquanto Sofia Ferreira se mostra preocupada: “Há uma coisa que me assusta: isto está incontrolável e a Câmara Municipal não sabe como resolver o problema”. Pedro Caetano levanta outra questão: “Já reparou que não há aves em Alcanena? Deixaram de nidificar por cá... não se vêem andorinhas... nada”.

Questão política 
O MSA tem sido acusado de se esconder atrás de cores partidárias, nomeadamente por Fernanda Asseiceira, actual presidente da Câmara Municipal que, no seu discurso de tomada de posse, considerou que a vigília feita pelo movimento dois dias antes das eleições “politizou a questão”. Durante a nossa conversa os membros do MSA sublinham várias vezes que esta é uma causa de cidadania e Maria José Ferreira garante que “o movimento surgiu de um acto espontâneo nas redes sociais entre quatro amigas que não têm ambições políticas”, admitindo que “muita gente associa-o a algo político porque isto surgiu na altura da campanha, mas foi assim porque foi quando o mau cheiro se intensificou”. Desafiam a Presidente “a estar ao nosso lado” mas não poupam críticas ao trabalho até agora realizado: “usaram-se os colectores como bode expiatório mas a verdade é que o problema continua” depois do investimento feito para a requalificação dos mesmos. Desconfiam que a autarquia esteja refém do poder financeiro do concelho “porque tem medo que as empresas saiam daqui” e criticam a postura do executivo: “Afinal, a população socorre-se a quem?”, questionam. A falta de transparência no tratamento do problema é outra das críticas apresentadas pelo movimento: “Não há transparência no nome dos laboratórios que contratam e os relatórios são sempre inconclusivos. Não há registo oncológico desta zona porquê? Não há estudo de impacto ambiental, para que se possa fazer a relação entre as coisas. Porque é que não há fiscalização?”, são algumas das questões que o MSA gostava de ver esclarecidas. 

A porta-voz do movimento está convencida de que a tentativa de politizar o MSA parte da própria autarquia “para descredibilizar e ridicularizar um movimento que com uma semana de existência colocou 200 pessoas na vigília e ao fim de um mês, mesmo sem muitos eventos, começa a agitar as coisas” sustentando essa ideia com o facto de que “o ambiente nem era um dos temas principais da campanha da Presidente, surge quando aparece o movimento”. A verdade é que Fernanda Asseiceira, na sua tomada de posse a 16 de Outubro, revelou que neste terceiro e último mandato assumirá directamente o pelouro do ambiente. Carlos Vala acredita que, por estar muito pressionada pelo poder económico, Fernanda Asseiceira “vai arrastar o problema até se ir embora”, em 2021.

Movimento e Carta Aberta 
Apesar de ter sido criado de forma espontânea com o objectivo de alertar a população para o combate o grave problema no concelho, o MSA desde cedo cativou a população e tem sentido um forte crescimento desde que nasceu a 26 de Setembro. Após a vigília realizada a 29 de Setembro, que contou com cerca de 200 pessoas, o movimento sentiu necessidade de evoluir. 

Nesse sentido, foi eleito no dia 28 de Outubro, no auditório municipal de Alcanena, o secretariado do Movimento pela Saúde de Alcanena que ganha, assim, um conceito mais formal e se torna o baluarte para os cidadãos de Alcanena na luta contra o problema. Fazem parte do secretariado eleito Maria José Ferreira, Elisa Alves, Pedro Caetano, Natalina Caetano, Marcelo Costa, Filipa Ferreira, João Calçada, Sofia Ferreira e Carlos Matias. 

Na reunião ficou prevista uma reunião com a direcção executiva do ACES Médio Tejo, contactos com a população para a recolha de assinaturas, a realização de uma manifestação a agendar e a concretização de reuniões periódicas de duas em duas semanas. Numa sala com 102 pessoas, foi lida uma carta aberta que visa “denunciar a grave situação da problemática ambiental que se vive em Alcanena e que tem vindo a agravar, incompreensivelmente, nos últimos meses”. Recordando que este é um problema antigo, o MSA questiona como é que após recentemente “ter sido feito um investimento de 6,5 milhões de euros” para melhorar a rede de colectores “esta problemática continua a persistir e a atentar contra a qualidade de vida da população e ambiental do território”. A missiva continua lembrando que “a população, desde sempre, tem sido massacrada com os cheiros nauseabundos e fétidos” e pela “contaminação dos solos que durante décadas foram resultado consequente de 40km (sem contabilizar ramais) de uma rede de colectores corroídos e em situações de extrema gravidade pelo elevado e anómalo nível de contaminação química”. Com o “agravar da intensidade e a frequência dos maus odores” nos últimos meses que têm feito crescer os problemas de saúde e diminuído a qualidade de vida da população, o MSA exige que sejam “tomadas medidas conducentes à resolução do problema, uma vez que aquelas até agora adoptadas pelas entidades responsáveis se têm mostrado ineficientes”. A carta foi encaminhada para a AUSTRA, a Associação Portuguesa dos Industriais de Curtumes, União de Freguesias de Alcanena e Vila Moreira, Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo, Ministério da Saúde, Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, Agrupamento de Centros de Saúde Médio Tejo, Centro de Saúde de Alcanena, Ministério do Ambiente, Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente da Guarda Nacional Republicana, Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, Agência Portuguesa do Ambiente, Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, QUERCUS, Presidente da República, Vereadores e Deputados eleitos na Câmara Municipal de Alcanena e Assembleia Municipal, deputados portugueses eleitos no Parlamento Europeu, deputado representante do PAN no parlamento e grupos parlamentares eleitos na Assembleia da República. 

Apesar de lamentarem “o lema dos conformados que se resignam porque isto sempre cheirou mal”, Carlos Vala garante que o MSA está “disposto a ir o mais longe possível. O nosso objectivo é acabar com o problema”.

* Reportagem publicada originalmente em Novembro de 2017.
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