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05 MAR 2020
Um misterioso amor cigano
Por Jornal Abarca

Passaram quase 50 anos... Ao longe uma caravana, aproximouse... era a Ariadne. Ficara como era nos seus sonhos, sempre igual, como um cristal... Olhou para si, e o que viu ou sentiu foi o mesmo jovem Nestor, fogoso, cheio de energia e louco.

Ele estava obcecado, e tinha caído num estranho encantamento. E isso acontecia ainda mais sempre que a via, mesmo que de longe, numa feira de gado, num logradouro da cidade, no mercado a céu aberto e entre faias ou nas idas ao cinema que se realizavam todos os fins de semana. Nestor ficava perturbado com os seus olhos oblíquos e castanhos e a forma como o fixavam, pelo cabelo negro brilhante, longo e liso a dar pela cintura e pela sua silhueta de estatura mediana e elegante, viçosa e esquiva, com movimentos ondulados que sempre o prendiam e estacavam, como uma estátua, até ela desaparecer entre estranhos e malteses e já não ser mais que um pontinho. Mas era sobretudo quando ela aparecia de surpresa e, quando perto, o silêncio que ficava entre os dois que o esmagavam.

Ela fixava-o num enigma que se prolongava indefinidamente, e depois desaparecia furtivamente, quase fugia. Nestor frequentava as grandes feiras e mercados da região por ser o filho único de um grande lavrador da região e detentor ainda com umas vagas referências de uma ancestralidade nobre, que lhe acrescentavam altivez à valentia. Dava ordens e acompanhava de perto os empregados na venda dos cavalos e dos machos ou de ovelhas e cabras ou no que as hortas e os montes produziam. Ela, cigana, como num desígnio, acompanhava os seus no negócio, nas habilidades e noutras artes de feira, e já mostrava os seus talentos a lançar as cartas do destino, a ler os vincos e as rugas das mãos e a vender as sinas que criava por instinto, pela observação e por manhas.

Um dia Nestor quis também conhecer a sua sorte, para o que estava destinado. Na verdade foi essa a única forma que encontrou de se aproximar da jovem e trocar com ela algumas palavras sob o pretexto de lhe entregar uma mão e sentir as suas, o que lhe dizia e deixar olhála sem se sentir constrangido pelo que quer fosse, salvo a proximidade dos seus familiares que vendiam calçado e roupa, ali relativamente perto, e ali relativamente longe. Esperou que a freguesia e os curiosos já rareassem. Na verdade, ela parecia já esperar por ele, estava inquieta, e disfarçou começando a falar baixinho. E Nestor ficou a saber por uma voz doce que ela se chamava Ariadne, dez anos mais nova que ele, ia com o clã para onde o clã fosse, e que nos próximos tempos iam permanecer num olival nas redondezas da cidade. Pouco falaram, muito disseram, e antes da despedida, Nestor ainda lhe confessou, como que deixando um sinal, que tinha uma paixão pelo cinema, e que era habitual ver os filmes que por lá passavam, O Doutor Jivago, E Tudo o Vento Levou, Rio Bravo… Ela, já aquietada, percebeu, e também percebeu logo que gostava muito de filmes, apesar de nunca ter visto nenhum, salvo algum episódio de alguma série de TV. Era no cinema que se encontravam, primeiro discretamente nos intervalos, e depois mais discretamente ainda nas últimas filas do cineteatro, pois o irmão mais novo da jovem “preferia” as primeiras filas a troco de uma tablete de chocolate que os dois lhe ofereciam. A paixão acendera-se em labaredas, sem nunca se ter consumado nem diminuído. Não era uma paixão totalmente platónica, tinha também os sentidos físicos a dar-lhe sustento, querenças e compromissos.

Um dia, Ariadne desapareceu. Nestor procurou-a no olival, nos seus poisos rotineiras na cidade e em todos os arredores, mas nem um sinal da sua cigana de ouro. Perturbado, pediu a toda a criadagem, cavadores de enxada ou ganhões, que em cavalos, bicicletas ou nos dois carros grandes da herdade saíssem por todas as estradas, escrutinassem os caminhos e desventrassem tudo até desvendar onde parava a caravana do clã de Ariadne. Um deles chegou com notícias no dia seguinte, a comunidade cigana já estava afastada mais de 80 quilómetros da cidade, algures numa encosta de um montado do Alentejo.

Nestor, impulsionado por uma mola de alento, pegou na espingarda, não fosse o diabo estar à sua espera, e logo partiu na sua pista. Já não se encontrava no monte indicado, mas encontrou a tribo algumas léguas depois, e logo o vulto esbelto da namorada na primeira carroça. O jovem lavrador foi esperando, respeitando distâncias, até que a comunidade assentasse. Quando chegou o crepúsculo, Nestor aproximou-se furtivamente, e Ariadne também, até se encontrarem onde os sobreiros se adensavam com o mato natural. Beijaram-se longamente, e Ariadne foi a primeira a recuperar o fôlego. “Querido Nestor, por tudo o que há no mundo, não voltes a procurar-me! Os meus pais desconfiam, se sabem vão matar-nos aos dois. Pelo nosso amor, não voltes a querer saber de mim nem a procurar-me nunca mais…”, beijou-o outra vez, e saiu a correr, puxando as saias para nem nelas, nem nos torrões do lavrado entre os sobreiros tropeçar.

Os olhos do jovem vaguearam vidrados pelo montado e o céu já negro parece ter desabado por inteiro sobre os seus ombros. Ainda olhou para a arma, mas temeu o que podia fazer com ela e com a sua solidão, e atirou fora todos os cartuxos que trazia.

Passaram quase 50 anos e o que era mais improvável aconteceu. Todos os dias e todas as noites de todos os anos, sempre o lavrador pensara na sua cigana, que um dia lhe implorara para não voltar a procurá-la. Teve mulheres, filhos e netos, mas foi a Ariadne que sempre amou. Por onde andaria ela na sua vida de nómada? Estaria viva? Hoje, já um velho agreste e amargo, ao ver ao longe uma caravana a parar e os seus ocupantes a começarem a acampar na berma da sua fazenda pareceu vê-la. Aproximou-se pausadamente um pouco mais, e era sem dúvida a Ariadne que há 50 anos não via, os mesmos olhos que o magnetizavam, o mesmo corpo, o mesmo ondular no vulto. Como era possível? Ariadne não envelhecera. Ficara como era nos seus sonhos, sempre igual, como um cristal que se mantinha incólume e a brilhar. E depois olhou para si, e o que viu ou sentiu foi o mesmo jovem Nestor, fogoso, cheio de energia e louco, que um dia vira o mundo a desabar.

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