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13 ABR 2020
Máximo Ferreira: "Camões sabia toda a Astronomia da sua época"
Por Jornal Abarca
Máximo Ferreira é um dos astrónomos mais influentes e respeitados em Portugal e quem no país mais tem contribuído para levar a ciência dos céus mais além e a mais gente.
 
Como divulgador científico e do prazer de desfrutar de experiências únicas capazes de nos fazer chegar mais próximo das estrelas, tem deixado uma marca indelével, que hoje é bem evidente na excelência do Centro Ciência Viva- Parque de Astronomia (CCV-PT), no Alto de Santa Bárbara, em Constância, e na realização anual das Astrofestas, que fascinam jovens de todas as idades. São iniciativas originais que, com recurso a telescópios e outras tecnologias, trazem planetas, cometas e nebulosas até aos mais remotos lugares do país, tirando quase sempre partido das suas particularidades geográficas. Máximo Afonso Ferreira tem uma paixão já incurável pela Astronomia e pelo “seu” Parque de Astronomia de Constância. Mas para o seu domínio da Astronomia e da sua divulgação muito contribuíram também a atração de sempre pela eletrónica, o gosto de fazer coisas e de as experimentar, e a capacidade de transmitir os complexos conceitos do Cosmos de uma forma desarmantemente simples e cativante. Foi o querer sempre ir mais longe e mais além que naturalmente o conduziu até à Astronomia e ao que tem feito…
 
“Fazia os trabalhos de casa a guardar duas cabras…”
Máximo Ferreira teve berço em Montalvo, em 1946, e foi nesta freguesia de Constância que forjou o seu carácter no molde duro dos dias difíceis, na influência do avô paterno e na vontade de seguir não pelo caminho que o pai e os outros queriam, mas o do seu próprio querer. “Eu, da infância, lembro-me sobretudo das coisas em que me meti, de alguns amigos que conservo, e do meu avô paterno, com quem estabeleci uma grande ligação afetiva. Eram tempos difíceis, eu tinha cinco ou seis anos, e íamos os dois para a horta com uma junta de bois, íamos ao mato, íamos descarregar estrume Lembro-me dele um dia trazer a camisa cheia de laranjas e chegar a casa dos meus pais e descarregá-las…”, recorda hoje Máximo Ferreira. Nos seus primeiros anos de escola, o petiz Máximo estudava, e depois da escola ia guardar duas cabras. “Enquanto as cabras pastavam, eu fazia os trabalhos de casa. Eu era trabalhador, gostava de estudar e de ler, e gostava também de ligar a teoria à prática. Lembro-me de, enquanto as cabras pastavam num vale o tojo-molar, uns rebentinhos, de que gostavam muito, e tremocilha (uma dieta de mistura que conferia um sabor melhor ao leite), um dia eu quis fazer um relógio de sol. Arranjei uma tábua e espetei um prego nela para fazer sombra. Era o meu relógio de sol…” Seria possível descortinar neste caso a primeira e precoce manifestação do jovem de se interessar pelos efeitos dos astros na Terra, mas Máximo Ferreira desmente logo a ideia: “Ainda demoraria mais de 20 anos sem ligar à Astronomia…”
 
Depois de concluir a escola primária e de ser admitido para o prosseguimento de estudos liceais, a realidade aterrou em cheio na vida do jovem. A família não tinha possibilidades económicas para viabilizar a continuação da sua carreira escolar. “Fui trabalhar para a Metalúrgica Duarte Ferreira [MDF]. Eu mantinha a ideia de continuar a estudar, mas nessa altura isso não era viável, só após os 14 anos é que era possível trabalhar e estudar depois do trabalho”, lembra o astrónomo, notando que começou como moço de recados durante dois meses  %u0336  “e isso foi uma magnífica escola de vida”. De resto, na MDF teve muitas outras tarefas e encargos. “Depois, continuei nas mesmas funções, mas já com capacidade para decidir, atrasava-me às vezes junto a um carpinteiro ou a um torneiro mecânico, a tornear uma peça, porque eu era muito curioso e queria ver como faziam, também gostava de ir até à fundição. Ainda fui ajudante no laboratório de química e estive nas secções de mecânica, de acabamentos e noutros lados, como montador eletricista. A eletricidade era então o meu ideal”, observa Máximo Ferreira, notando que, a certa altura, o ambiente na fábrica já não lhe agradava. “Eu queria estudar, e queria mais, não sabia bem o quê, mas não era aqui. O sistema de trabalho era à peça, tínhamos de fazer tantas peças num certo tempo, e isso criava uma grande pressão no trabalho, tínhamos 10 minutos para ir à casa de banho…”
 
Aos 14 anos o jovem operário retomou os estudos e passou a frequentar Escola Industrial e Comercial de Abrantes. A sua vida começou a andar então em contrarrelógio. “A minha mãe chamava-me às seis horas, eu ia de bicicleta de Montalvo até Rio de Moinhos, onde apanhava o barco para o Tramagal, para a fábrica. Ao fim do trabalho (a MDF dava uma hora a quem estudava), voltava a Montalvo, e depois ia de novo de bicicleta até à escola de Abrantes. Concluídas as aulas voltava, já tarde, para casa, ao todo eram 40 quilómetros de bicicleta por dia”, conta o astrónomo, acrescentando que era então “músico na Filarmónica de Rio de Moinhos, sacristão em Montalvo, estudante em Abrantes, operário em Tramagal e agricultor aos fins de semana”. 
 
A arte de semear Astronomia pelo país
“Aos 17 anos fui voluntário para a Marinha Portuguesa. O meu pai era contra, mas fui-o convencendo, e fui. A Marinha era um escape. A verdade é que a Guerra Colonial metia-me impressão, e eu fazia tudo para não ir para o Ultramar. É verdade que na Marinha eu corria o risco de ir para fuzileiro e ser incorporado para a guerra, mas salvou-me o ter feito uma boa prova escrita e a declaração de que queria ser eletricista”, confessa o astrónomo. Máximo Ferreira passou a investir na sua formação em eletrónica e comunicações, concluiu o curso mais importante desta área na Marinha e chegou a altura de fazer as opções para o seu futuro. “Escolhi os submarinos, era a garantia de que não ia para o Ultramar”, confessa. Mas também foi uma experiência que, durante quatro anos, o marcaria, incluindo o facto de passar nove dias consecutivos debaixo de água em serviço no posto de comando. “Tínhamos apenas o periscópio para vir espreitar a luz do dia. O submarino vinha até 12 metros de profundidade para carregar as baterias e para o motor de combustão aspirar o ar através de um tubo que subia até ao exterior”, recorda o astrónomo, acrescentando que, posteriormente, seria ainda professor de eletrónica na corporação militar. Nela esteve 12 anos como militar e outros 12 como civil. “Foram 24 anos de trabalho, foi um período fantástico”, frisa.
 
Uma parte importante da sua vida passou-a Máximo Ferreira no Planetário Calouste Gulbenkian. A Marinha sempre esteve muito ligada ao Planetário. A navegação marítima esteve historicamente ligada à Astronomia e, no Planetário de Belém, Máximo Ferreira teve durante alguns anos um desempenho de extraordinária relevância nacional quer na sensibilização científica do público escolar, quer no ensino da navegação astronómica. Aos 28 anos quis estudar Física e Astrofísica na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), a sua vida estava longe de ser fácil, mas o sonho de se ligar à Astronomia e ser astrofísico não esmorecia. “Trabalhava, dava aulas num externato, estudava na faculdade, tinha dois filhos e ainda um empréstimo bancário para a casa que era preciso pagar…”, elenca, sorrindo, o astrónomo. Tornar-se-ia depois professor na sua FCUL, e mais tarde seria o responsável pelo setor de astronomia do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, dinamizando a formação de professores de Física e Química, já que a Astronomia servia de veículo privilegiado para alguma interdisciplinaridade. A criação de eventos à volta da Astronomia capazes de empolgar os jovens alunos, as suas famílias e o público em geral passou a ser então uma prioridade do Museu de Ciência. Até que…
 
“Nesse âmbito organizámos em Constância em certa altura uma formação de docentes na Escola Básica e Secundária Luís de Camões, e daí surgiu o interesse da escola e da câmara que levou à criação do Observatório Astronómico e da Natureza no Alto de Santa Bárbara. Depois disso, reformei-me para vir para Constância a… trabalhar mais”, ironiza o antigo docente, que desde 2004 dirige o CCV-PT. Constância, que é terra com o seu mistério cósmico, e é associada muitas vezes a Luís de Camões parecia um local ideal. E, além disso, “Camões [que tem uma escultura de José Coêlho alusiva à sua obra junto ao CCV-PT] sabia toda a Astronomia que era conhecida na sua época”, elucida.
 
Máximo Ferreira tinha cultivado o gosto pela divulgação dos astros e das suas histórias, investigava, era um excelente professor, mas era ao levar a ciência cósmica a cada vila, a cada casa e às escolas do país que se sentia na sua nação. Onde havia um eclipse ou um cometa passava lá com mais brilho, era aí que se sentava e esperava com os telescópicos apontados, computadores e outros equipamentos de ampliação e análise, não só para observar mistérios, mas também os mostrar às testemunhas que o seguiam. E beneficiou também do apoio que o antigo ministro José Mariano Gago deu à astronomia, às suas iniciativas e à sua visão. As astrofestas resultam deste interesse pela divulgação científica, e a partir de 1994, onde houvesse uma serra, um céu limpo e sem poluição luminosa e meia dúzia de interessados locais, era quase certo que lá estava Máximo Ferreira. E iria também fazer os possíveis para que aí se realizasse algum evento de divulgação astronómica. Foi assim logo nesse ano em Redondo (na Serra d’Ossa), depois em Gouveia (Serra da Estrela, 1999), e seria assim igualmente na Serra do Gerês (2005), no aeródromo de Proença-a-Nova (2006), em Serpa, Aljustrel, Nisa, Marinha Grande e mais algumas vezes, em Constância ou noutros pontos. E a próxima, este ano, a 27ª, vai ser em Sagres, no Algarve. “É importante haver localmente um núcleo de pessoas interessadas na Astronomia, e também sempre quisemos envolver as câmaras nos eventos, de modo a que depois de cada astrofesta, fique sempre uma semente [astronómica] que se possa desenvolver”, explica o cientista. 
 
“As escolas estão condenadas ao sofrimento”
O Parque de Astronomia de Constância é o habitat próprio de Máximo Ferreira. A paixão e o entusiasmo quase juvenil com que apresenta aquele mundo, que sublinha ser muito simples, é contagiante. É de lá que contempla o Universo e cimenta as suas convicções e filosofias do mundo. Mas não ficou distante ou indiferente às realidades mais planas e chãs. Sobre as enormes mudanças nas escolas, o astrónomo esclarece: “O que mudou foi a sociedade em geral. Os métodos de ensino dançam ao tom desta música. Os pais não se inquietam muito, por falta de tempo ou de preocupação com os filhos, e a escola sofre as consequências, enquanto vai procurando soluções”. E acrescenta: “As escolas estão condenadas ao sofrimento. Não vejo possibilidades de se estabelecer uma certa ordem e disciplina sem o envolvimento das famílias, isso não está ao alcance das escolas”. Por outro lado, discorda do “passa tudo” generalizado. “Não é só em Portugal que isso acontece. São medidas hipócritas para camuflar outra realidade, que é a incapacidade dos governos resolverem os problemas sociais antes da escola”, sustenta. 
 
A Astrologia ficou nas cavernas…
“Sobre a existência de vida, como a concebemos, acho que é pouco provável que exista no nosso Sistema Solar. Noutros planetas à volta de outras estrelas, estou convencido de que haverá vidas, mais evoluídas ou menos que a nossa”, afirma Máximo Ferreira, notando que a chegada do homem à Lua não o marcou muito: “Nessa altura eu andava no submarino, e estava mais interessado na eletrónica e na deteção de potenciais inimigos- Andávamos ao longo da costa portuguesa e íamos até ao Golfo da Biscaia, à Madeira, a França, ao sul de Inglaterra…” A sua visão privilegiada do mundo, até mais longe e munido de poderosos telescópicos, não teve a mínima influência nas suas convicções religiosas. “Foram as minhas preocupações sociais que me afastaram da religião. Na catequese, quando era jovem, achei que Deus não devia pactuar com injustiças. Mas hoje penso que só um Deus vingativo e cruel pode ter permitido um mundo assim… Respeito muito quem é religioso, mas eu hoje sou agnóstico”, admite o cientista. Sobre a Astrologia, e a diferença entre um saber metódico e outro que o não é, Máximo Ferreira tem uma perspetiva curiosa e contundente: “A Astrologia foi, sem dúvida, a mãe da Astronomia, mas a Astronomia saiu das cavernas, e a Astrologia ficou lá…”.
 
A passagem do astrónomo pela liderança da Câmara de Constância deixou marcas no concelho e também no autarca. “Gostei muito! Nunca trabalhei tanto na minha vida! Eram 18 horas por dia, todos os dias. Eu levava a pasta com o ‘despacho’ para casa ao fim do dia, e em casa continuava. Gostava de enfrentar desafios difíceis, e resolvi a maior parte deles”, afirma. Mas depois de cumprido um mandato veio a desilusão. “Eu estava preparado para me recandidatar, e a minha não-recandidatura envolveu circunstâncias lamentáveis sobre as quais não falarei”. O interesse do diretor do CCV-PA de Constância pela ciência dos astros levou-o já à publicação de alguns livros que tornam as galáxias mais próximas e os planetas mais íntimos, como Para a História da Astronomia em Portugal, Carta Celeste (esgotado), Introdução à Astronomia e às Observações Astronómicas (em coautoria com Guilherme de Almeida, 7ª edição, esgotado) e o Pequeno Livro de Astronomia (6ª edição), este integrado no Plano Nacional de Leitura. Atualmente, tem em mente a publicação de mais três obras. “Falta-me é o tempo para as escrever…”, confessa.
 
 
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