Home »
02 NOV 2020
COVID-19: Testemunho de uma positiva confessa, por Joana Rosa
Por Jornal Abarca

Acordei cedo, como em qualquer outro dia e fui tomar banho, antes de acordar a família. Durante o banho, apercebi-me que o shampoo não cheirava igual… ou melhor, não cheirava a nada. Tentei relativizar porque, como doente oncológica que sou não fazia ideia de como reagiria o meu organismo a uma possível infeção, mas só perder o olfato podia não ser assim tão dramático. Estava, talvez demasiado, atenta à pandemia que todos à minha volta pareciam não temer e fiquei em apneia quando na tentativa desesperada de saborear café, o mesmo me soube a água quente.

Após contacto com a Linha Saúde 24, que desvalorizou por ser apenas um sintoma e que me aconselhou apenas a ficar isolada em casa e atenta ao surgimento de mais algum sintoma sugestivo de COVID-19, que felizmente nunca chegou. No entanto insisti e depois de autorização superior lá consegui que o teste me fosse prescrito.

Hoje vejo que, para mim, insistir foi um erro, teria seguido o caminho mais fácil e rápido… mas acabou por ser o que salvaguardou os que estão à minha volta e serviu para alertar os que me são próximos ou da minha família, até porque, continuava a ser a única “maluquinha da Covid” que até pede para estar em segurança em teletrabalho. Afinal, viram depois que eu não estaria em segurança, mas sim a proteger os demais por estar a cumprir o plano de contingência do serviço. Em suma, ninguém está em segurança, até porque, todas as manhãs entregamos as nossas crianças na escola.

Ao resultado positivo, que cai sobre nós como uma verdadeira bomba, de medo, segue conversa com as autoridades de saúde, que perguntam se viajámos para fora do país (nem do concelho saímos), pedem os contactos de risco que tivemos nos últimos 5 dias, cujos meus se resumiram a 3 pessoas - com excepção feita, claro, aos que comigo coabitam. Por contactos de risco falamos dos contactos sem máscara por mais de 15 minutos em ambiente fechado

Aproveito para sugerir que façam diariamente este exercício: com quem estive que não fosse realmente necessário? Reflectir também se estou a agir em segurança para mim e para os outros. Podemos salvar vidas se formos conscientes a esse ponto.

Seguiram-se 5 dias de isolamento dentro da própria casa, com as miúdas a olharem para mim no cimo das escadas, a falarmos através de videochamada e a ouvi-las saudáveis e felizes, mas a estranharem o distanciamento da mãe. Esses são os 5 dias necessários para poderem, com alguma garantia, testar os nossos contactos de risco e estes poderem testar “não detectável”. Cumprindo estes prazos, segundo o que me foi explicado, a hipótese de falsos resultados é praticamente nula, sendo no entanto necessário cumprir os 14 dias de isolamento profilático e estar atento a possíveis sintomas que possam surgir.

Testados os restantes elementos da família chegou o veredicto: o coronavírus habitava em nossa casa e não pagava renda.

Estaria a mentir se não reconhecesse a minha alegria. Apesar de os saber a todos infetados, via-os completamente saudáveis/assintomáticos. Saber que podia voltar a estar com eles e superarmos isto em família, tirou-me um peso dos ombros. Não imagino quais as consequências a nível psicológico de viver na mesma casa que a mãe sem a poder ver ou estar perto, mas acredito que sejam também, a par das viroses, pouco benéficas para as nossas crianças.

Seguiram-se dias de isolamento, com contactos telefónicos diários com o nosso médico de família para registar temperaturas ou possíveis sintomas, visitas de amigos e familiares ao portão (com as devidas distâncias e medidas de segurança) para nos deixarem bens alimentares e, acima de tudo, palavras de força e alento. Fica em nós uma sensação de gratidão indiscritível. Foram dias de guardar o lixo durante 72 horas para que alguém da família o possa levar ao contentor e a ver os pássaros nos muros de casa, livres. A aguardar expectantes o dia em que poderíamos testar novamente e cujo resultado ditaria o nosso futuro a curto prazo.

No segundo teste (que se realizava 14 dias após o resultado positivo) dois de nós testaram negativo, outros dois passados mais 15 dias, e só passado esse tempo fomos livres para regressar à rua. Fico verdadeiramente feliz pelo avanço do conhecimento científico sobre o vírus, que permite agora garantir que depois do resultado positivo, e caso não haja sintomas, podemos voltar à rotina normal após 10 dias de isolamento. Mais ninguém passará por teste depois de teste. Conheço casos de pessoas a testar positivo durante mais de três meses e, por isso, privadas da sua liberdade durante todo esse tempo.

Para trás ficam atitudes completamente descabidas de onde menos esperávamos, que só reflectem a desinformação em que vivemos apesar da rapidez e facilidade de acesso que temos à mesma. O medo tomou conta das pessoas e, como tal, a irracionalidade está à vista. Houve quem saísse por ver algum familiar meu chegar, existiram telefonemas para saber se tinham privado comigo (teremos todos um polícia dentro de nós?), houve a loucura total. Tão só e apenas porque dos quase 100 casos registados na altura em Torres Novas, eu terei sido a primeira a assumir-me positiva e a fazer questão de alertar a comunidade de que o coronavírus está aí e não o podemos desvalorizar.

É certo que as atitudes ficam para quem as pratica e fica também na minha consciência a certeza de que fiz tudo o que estava ao meu alcance para parar esta cadeia de transmissão, da qual desconheço a origem, mas de que sou conhecedora do fim.

Para o futuro, fica a esperança de que este coronavírus não traga ainda males de maior à nossa família, a certeza de que se sobrevivemos a mais esta prova e de que saímos dela muito mais fortes e empáticos. Fica também a nossa disponibilidade para contar a nossa história e para apoiar em tudo o que nos for possível aqueles que, como nós, não conseguirem escapar à pandemia. Quer seja por serem infectados, por perderem os seus postos de trabalho ou, pior ainda, perderem algum familiar.

Por fim, não podia deixar de vos escrever para se cuidarem, cuidarem dos vossos, evitarem comportamentos de risco e terem total empatia pelos que saberão positivos. O coronavírus é transmitido por via respiratória - basta respirar. Como tal, só estará livre de contrair e desenvolver a doença COVID-19 quem já não o poder fazer.

Fiquem alerta. Por todos.

Joana Rosa,
a primeira doente assumida de Covid-19, em Torres Novas

(0) Comentários
Escrever um Comentário
Nome (*)

Email (*) (não será divulgado)

Website

Comentário

Verificação
Autorizo que este comentário seja publicado



Comentários

PUB
crónicas remando
PUB
CONSULTAS ONLINE
Interessa-se pela política local?
Sim
Não
© 2011 Jornal Abarca , todos os direitos reservados | Mapa do site | Quem Somos | Estatuto Editorial | Editora | Ficha Técnica | Desenvolvimento e Design