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21 DEZ 2020
CONTO: "O Tambor"
Por Manuel Fernandes Vicente

Era ao ouvir Leo, o Tambor, que muitos, leitores de Friedrich Nietzsche, entendiam finalmente o que o grande filósofo alemão, que um dia referiu que “sem a música, a vida seria um erro”.

Tinha nascido assim, o seu corpo tinha a graça que tem o de qualquer bebé redondo e inocente, tinha o ritmo da hiperatividade e a alegria natural de qualquer criança no seio da família, mas não pronunciava uma única palavra, para ser mais preciso nem um som ele emitia, apesar de a sua mente se encher de emoções que sentia, mas não tinha forma de exprimir. Quando nasceu anunciou solenemente a sua chegada ao mundo com uns berros compulsivos e bem estridentes, mas depois disso, ficara silencioso. Era como se algo então se quebrasse misteriosamente e de forma irreversível, impedindo-o de comunicar o que quer que sentisse, fosse fome, sede, frio, a necessidade de um simples abraço ou de um grito de rebeldia. Leo ouvia e entendia o que os outros diziam, mas quando chegava a sua vez de falar, a voz faltavalhe, uma estranha mudez tomara conta de si, e bloqueava a sua forma de se relacionar com o mundo e com a sua própria mente, como se um opressivo muro de borracha se intercalasse entre os dois e bloqueasse qualquer comunicação. 

À medida que crescia, Leo sentia que a pele de todo o seu corpo se ia transformando gradualmente numa membrana gigante e hipersensível capaz de captar todas as vibrações e os ritmos do mundo. Tudo no universo parecia ser vibração, e todas essas vibrações e pulsações em que o mundo parece querer e gostar de se exprimir lhe chegavam com particular intensidade. Então, Leo começou a compreender que dominava como ninguém a capacidade de interpretar esses pulsares de que afinal toda a vida física e espiritual também era feita de pulsações, desde as agitações moleculares mais simples às sístoles e diástoles do coração, ao remar dos barcos ou aos ritmos cósmicos mais longos e à tensão/repouso nos ritmos musicais, o som dos sinos que dava ordem e marcava pêndulo do diaa-dia das aldeias, e até no equilíbrio mental das pessoas. Começava agora a compreender o porquê de, desde muito cedo, o atraírem particularmente os brinquedos e engenhos que podia agitar ou percutir, fosse um xilofone, umas maracas, um gong, ou um pequeno cacho de sinos. Gostava de criar ritmos com eles ou colorir músicas decorando-as com o seu som, mas o instrumento que verdadeiramente o fascinava era o tambor. Um tambor básico, elementar, sem o menor vestígio de qualquer sofisticação ou complexidade. Dessem-lhe um tambor e duas baquetas para as mãos e ele sentia que, se quisesse, podia mudar o mundo (pelo menos o seu).

Era tanto esse deslumbramento, e tão reconhecido o seu virtuosismo e diferença na execução do instrumento que já lhe chamavam Tambor. Com um tambor colado ao corpo e baquetas nas mãos, Leo dominava como ninguém a suprema arte da simplicidade, nada dava mais trabalho que esta arte, mas ele dominava-a por instinto, talvez por desde muito cedo se ter tornado sensível, por força da sua necessidade (e carência) a tudo o que fosse a mínima vibração. Passou, assim, a ser capaz de manifestar os seus sentimentos e até as suas ideias através de um tambor simples feito da pele de uma cabra, que foi durante muitos anos o seu animal de companhia, que acariciava e sabia ouvir os seus silêncios. Adorava esse animal montês, e esse sentimento parecia ainda prevalecer, e ser correspondido, mesmo depois da sua morte, com a pele curtida do pequeno e adorado ruminante.

Aonde chegasse, a um castelo abandonado, a um funeral ou a uma praça pública, pelos trilhos nas montanhas ou junto ao mar, o Tambor interpretava o enigma do lugar ou o espírito da ocasião transferindo-os de forma sem mácula e imensa para as vibrações na pele do seu tambor, à qual também dava a tensão, a amplitude e a gravidade adequadas para as suas cadências.

Primeiro, eram as crianças que gostavam de o ouvir, e o acompanhavam no seu tamborilar. Depois, foram chegando outros aldeões que, nas suas exibições informais, o iam ouvir ao adro da igreja, e que sentiam uma enorme empatia com aqueles toques do tambor, com as suas marcas bucólicas e campesinas, mas que, na forma empática como era percutido também parecia ser tocado por um extraterrestre, que convocava vibrações cósmicas para ali chegar com elas em formas sonoras. Aos mais velhos, fazia-os renascer e dançar, aos mais jovens, entender a alma com que o futuro iria chegar - e tudo no mesmo baquetear. E, gradualmente, de outras aldeias, das cidades mais próximas, e depois de outros países, chegavam mais pessoas, povos, raças e nações. Não havia já forma de exprimir por palavras ou expressões humanas as emoções que todos sentiam ao ouvi-lo. Não era uma questão de intensidade, ou de turbulência energética. Era a capacidade de evasão que aquelas batidas despertavam na consciência de cada um, fazendo-os descobrirse em intimidades que desconheciam e que os faziam chegar tanto à sua ancestralidade genética como a um futuro sideral. Eram mágicos aqueles toques que despertavam, assim, tanto ideias adormecidas, como emoções anestesiadas há muito ou desde sempre, e povoavam tantas solidões.

Era ao ouvir Leo, o Tambor, que muitos, leitores de Friedrich Nietzsche, entendiam finalmente o que o grande filósofo alemão, que um dia referiu que “sem a música, a vida seria um erro”, queria realmente dizer. A música de Leo era feita numa linguagem que não era alcançada nem por palavras nem pela razão. Eram emoções que chegavam a todos, de maneiras distintas, mas sempre intensas e com sons que pareciam simultaneamente pessoais e universais.

O seu virtuosismo era tal que alguns, certamente por despeito ou inveja, especulavam que só o conseguira por ter estabelecido um pacto secreto com o diabo. Outros, que não, que o conseguira com muitos exercícios, vontade de se superar e paixão, e assim ter polido o seu talento, transformando-o num génio das percussões. Outros ainda, que o tinha obtido devido à sua mudez, e que fora esta considerável inibição que o levara a encontrar outras vias alternativas para “falar” o que precisava de dizer. Até poderiam ter todos a sua parte no bolo da razão. Mas, quando Leo subia a qualquer palco, instalava-se um profundo silêncio entre a multidão, a sua música era uma viagem a todos os mundos, incluindo os mais íntimos de quem o ouvia. 

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