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02 FEV 2021
CONTO | "A História do Corcunda Gargana", por Manuel Fernandes Vicente
Por Jornal Abarca

Havia antigamente junto à Serra da Gardunha, no coração da Beira Baixa, próximo do Convento de Santo António (também mencionado como o de Nossa Senhora do Seixo), uma figura misteriosa equipada de um olhar vesgo e movimentos desconexos que a todos causava assombro, por esse mistério implícito nele, e por ser frequentemente referido pela esmerada prática das mais excelsas virtudes da praxis cristã.

Chamavam-lhe, e ele acudia, por Gargana, um corpanzil corcunda de urso pardo e, por isso, comparado com frequência a eles, mas demonstrando-se sempre devoto a Cristo. Habitava há muitos anos um casarão com uma torre que havia junto ao convento, e era próximo e solícito dos frades que se acolhiam no convento, prontificandose sempre para algum esforço mais exigente no edifício ou nos seus claustros, ou para ir à vila com o seu muar buscar os alimentos de que careciam, e que lhes trazia desinteressadamente. Mas o vesgo Gargana mantinha sobre si e a sua vida o mais insondável silêncio, poucas vezes falava, e de cada vez que o fazia era para deixar ainda mais denso o enigma de quem realmente era. Por isso, dele muito se dizia, e ainda mais se imaginava. 

Contava-se que, ainda jovem, e devoto sem intrigas de Santo Agostinho, Gargana saíra de casa e percorrera durante muitos anos, como missionário, todo o mundo, onde conheceu muita gente e fizera de tudo. Diziam isso porque ele, quando falava, era quase sempre com palavras estranhas e com citações que sabia de cor do seu santo de devoção, especialmente uma que repetia e a que recorria como uma máxima da sabedoria: “O mundo é um livro, e quem não viajou ainda não saiu da primeira página”. Dizia-se também que, no seu casarão, não tinha um único livro, mas ninguém o podia atestar com fidelidade, porque nunca alguém lá entrara alguma vez. E outros especulavam que era porque já correra o mundo, e muito vira, que podia dispensar os livros, pois nada do que eles pudessem dizer - grandezas e misérias, amores e ódios - lhe podia ser desconhecido.

A bondade do irónico Gargana não se limitava, todavia, à ajuda aos monásticos. Estes tinham o hábito de acolher nalguns dos seus aposentos os peregrinos ou quem quer que fosse que se aventurasse pela serra nas suas caminhadas. Por vezes, eram esses caminhantes surpreendidos, por um nevão ou por alguma tempestade, e os frades, fazendo jus e prática dos seus desígnios, abrigavam com fraternidade e algum alento quem tinha de se ousar pela serra, então repleta de alcateias, meliantes e de outras ameaças. Mas quando eram surpreendidos pela noite, e precisando de descansar e retemperar as forças para o dia seguinte, já encontravam cerradas as portas do convento, e os frades impedidos por regras próprias de as abrir. Valialhes então a bondade e a solicitude do corcunda vesgo, sempre vigilante na torre de quem se aproximava do convento, e a quem os frades não podiam valer. Delicadamente, dava os seus préstimos, oferecia um quarto e até tinha sempre alguma coisa pronta na mesa, um queijo que ele própria fizera, algum mel, um bom vinho da adega, até uma palavra de conforto - e depois, como anfitrião, encaminhava o viajante até ao quarto para um justo repouso. Se fosse necessário, e se os seus hóspedes, que nada pagavam pela estadia, se sentissem amedrontados por algum bando de lobos que os perseguisse, o Gargana saía destemidamente a tocar um trombone assustador, com os seus cães à ilharga a ladrar e um fogacho enorme nas mãos, que alumiava a noite e punha em debandada os lobos da alcateia, que de imediato voltavam em corrida assustada aos seus refúgios serranos. Os aldeãos ouviam à noite o trobone e os cães, e comentavam:
- Lá vai o Gargana outra vez atrás dos lobos da serra!...

Todos na aldeia, frades e populares, homens e mulheres, ricos e pobres, reconheciam os cuidados e elogiavam a abnegada caridade do Gargana, exaltando também a sua notória religiosidade. Todos os dias, logo ao nascer do Sol, o homem procurava com humildade e devoção a igreja conventual, benzia-se sem jeito da pia da água benta, comungava compenetrado no significado da hóstia, tomava-a, e participava envolvido no culto. Era um cristão afeiçoado, pontual, solidário e piedoso. Ou, pelo menos, era assim que parecia e era tido por todos os que o conheciam ou dele ouviam falar. Isto foi assim durante muito tempo, talvez tempo demais. Mas um dia tudo mudou. A realidade era muito diferente. E tinha pouco de piedosa, e menos ainda de solidária.

Os frades e as pessoas comuns elogiavam o que era público e manifesto daquilo que o fiel corcunda fazia, demonstrava e exibia. Mas desconheciam em absoluto a outra parte, o lado obscuro do gigante misterioso, porque esse lado só se passava dentro da cerca e do casarão, com as portas e janelas bem trancadas.

Na fase de acolhimento dos viajantes na sua fortaleza, ainda o Gargana dava mostras de bom anfitrião, lavava-lhes os pés, servialhes uma retemperadora refeição e, na expetativa de um natural cansaço, ajudava-os a deitarem-se, esperando que o sono chegasse. E era essa a altura em que chegava a abominável criatura que habitava nas suas entranhas. Mal sentisse os hóspedes adormecidos, Gargana lançava-se sobre os seus corpos, com uma mão tapava-lhes a boca e com um punhal na outra, desferia-o até atravessar o coração das vítimas, sem tempo para reagir ou gritar por socorro. Depois, o Gargana apoderava-se do que essas pessoas traziam consigo, sobretudo fios e moedas de ouro e prata, e arrastava os seus corpos para uma gruta enorme que havia junto a um carvalho no fundo da quinta, e por lá se sumiam todos.

Um dia, o macabro corcunda não foi visto na missa da manhã, nem durante todo esse dia, nem nos dias seguintes. Os frades acharam estranho e intrigante. E intrigados, saltaram a cerca à volta da casa daquele sequaz do diabo, e encontraram-no morto à frente do casarão com milhares de valiosas moedas à sua volta ainda ensanguentadas. Os freires procuraram ainda chegar às moedas, mas elas magicamente desapreciam antes que lhes pudessem sequer tocar, e interpretando isto como algo sobrenatural, logo a irmandade decidiu pelo enterro do Gargana, como um dos seus, num dos claustros do convento. Mas não foi por muito tempo. Numa noite de breu e grande tempestade, raios e rajadas de vento que arrancavam as árvores à volta do convento, chegaram três anjos envoltos num manto de luz que bateram com tanto fragor no portão que quem ouviu as pancadas nunca mais esquecerá. Chegaram à campa do tenebroso malfeitor, arrancaram-no abruptamente do sepulcro e deram-lhe tantas pancadas violentas nas costas, quantas as que foram precisas para que o cadáver vomitasse todas as hóstias que tomara durante anos nas missas do convento. Depois os anjos desapareceram na noite, tal como a tempestade, os raios e o vento, deixando um silêncio negro e de gelo por todo o convento e pela serra. Ainda hoje, por todas aquelas serranias da Gardunha, “gargana”, para o povo, é o nome dado aos malfeitores, a seres abomináveis e gente indigna de ser considerada humana.

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