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02 FEV 2021
TESTEMUNHO | "Neste momento, os hospitais estão em total colapso..."
Por Jornal Abarca

Nos últimos dias, as notícias que nos chegam são arrepiantes. Igualmente arrepiante é a forma como grande parte da população prefere alhear-se destes dados assustadores e usufruir daquilo a que egoistamente chama a sua liberdade.

Deixei de me manifestar ativamente a este respeito. Isto não significa que não me preocupo: reflete simplesmente o desdém que vejo nas pessoas, o sentimento de que quaisquer palavras são vãs para aqueles que de forma totalmente obtusa fazem orelhas moucas a todos os avisos.

Mas cheguei ao momento em que não consigo mais não partilhar a revolta que sinto, e o calafrio que me assola quando ligo a TV, quando saio do trabalho, quando falo com a minha família ao telefone.

A ruína está iminente. Só posso falar da realidade que conheço proximamente – a do hospital onde trabalho – e dos números oficiais. Ontem [16 de Janeiro] fomos o país do mundo com o maior número de novos casos por milhão de habitantes. Hoje, o boletim da Direção Geral de Saúde reportou, novamente, mais de 10.000 casos de infecção Covid-19 – e sabemos que, ao fim de semana, os casos reportados são subdimensionados em relação ao número real, o que faz adivinhar uma explosão ainda maior nos próximos dias.

Neste momento, os hospitais estão em total colapso. Na maioria, já foram convertidas para doentes Covid cerca de metade ou mais das enfermarias existentes. Inventou-se espaços para doentes em todos os cantos disponíveis, colocaram-se camas em qualquer local onde coubessem. E não são suficientes. Nunca são. No hospital onde trabalho, fomos assistindo à conversão de uma, e outra, e outra enfermarias… e cada uma estava cheia ao final de poucos dias. Estas enfermarias estavam previamente destinadas a doentes internados com outras patologias… que neste momento se acumulam no Serviço de Urgência aguardando por uma cama que os acolha no internamento, e que eventualmente nunca estará desocupada para eles. Possivelmente, dada a saturação do Serviço de Urgência, onde já nem existem macas livres, aguardarão horas intermináveis dentro da ambulância que os leva ao hospital – isto, se houver uma ambulância disponível.

A logística dos cuidados aos doentes infetados pelo SARS-CoV2 é muito mais exigente do que a necessária para outras situações. Não podemos esquecer que a Covid-19 não é o motivo de internamento em todos eles – mas todos os doentes que são internados por outras razões e que testam positivo para a doença, mesmo que assintomáticos, requerem todos os cuidados de isolamento. E sim, há que admitir: perante tamanhas exigências de um tão grande número de doentes, a qualidade dos cuidados prestados fica muito aquém do desejável.

Os cuidados intensivos esgotaram a sua capacidade. A cada dia se decide, quando existe uma vaga, quem mais poderá beneficiar dela – pela idade, pelas comorbilidades. Ficam pelo caminho doentes em que, em qualquer outra circunstância, se investiria o mais possível. Gente que poderia ser a minha mãe, o meu sogro, o vosso pai, um dos nossos irmãos. Pela dura realidade de que os cuidados não chegam para todos num cenário de catástrofe.

Os meus colegas – médicos, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, assistentes operacionais – vão quebrar. Muitos deles estão em exaustão, a trabalhar praticamente sem pausas desde março. Alguns ficaram infetados pelo caminho – dentro ou fora do hospital. Por cada profissional de saúde infetado, uns quantos outros ficam sobrecarregados.

Não estive sempre na linha da frente. Tenho cuidado dos “meus” doentes com todo o cuidado, apenas quando possível e necessário de forma presencial, numa prática que é tão insatisfatória para eles como para mim. Alguns deles estiveram doentes e todos sobreviveram. Mas houve histórias tristes pelo meio, de quem perdeu os seus. No início, na urgência Covid e mais recentemente, nas enfermarias com doentes com Covid-19, vivi estas histórias muito perto. E ver isto a acontecer perante os nossos olhos é uma dor muito mais pungente do que possamos sentir ao ouvir as notícias com números anónimos.

Quem trabalha nos hospitais vê as vidas a apagarem-se impiedosamente. Vidas de gente com um nome, um olhar, uma história que se cruza com a nossa. Alguns doentes conseguem despedir-se por chamadas telefónicas antes de serem sedados e ligados a um ventilador, do qual não sabem se poderão livrar-se com vida. Outros, morrem numa solidão aterradora. Nenhum deles terá uma despedida digna, o que torna o luto muito mais difícil para quem fica a viver a saudade. A maioria, felizmente, sobrevive, mas não sem consequências – os mais velhos, muitas vezes, descem um degrau que nunca voltam a subir na escada da sua autonomia. São cuidados tão bem quanto possível, o que está longe de ser um cuidado com a humanização que qualquer um deles merece. Em breve, contudo, serão cada vez menos os que terão direito a cuidados, porque os recursos materiais e humanos estão a esgotar.

Não estou certa de que o português comum tenha noção do sofrimento que nos causa assistir a isto. O sentimento de revolta é tão grande que nenhum grito poderia exprimi-lo. Vemos imbecis a publicar fotografias de festejos em grupo nas redes sociais, num total desrespeito por quem se digladia todos os dias com este inimigo cruel e por quem já perdeu pais, filhos, irmãos para esta luta. O Serviço Nacional de Saúde tem-se visto totalmente depauperado nos últimos anos, hoje com menos cerca de 2 000 médicos do que há um ano e com uma crescente desigualdade no acesso à saúde que a todos envergonha – este mesmo que agora tem de fazer omeletes sem ovos. Os mesmos governantes que autorizaram a libertinagem do Natal que nos levou aonde estamos, confiando que o bom senso dos portugueses seria suficiente (erro crasso!), vêm agora lamuriar o aumento exponencial do número de casos, culpam os cidadãos e vêm colocar água na fervura com um confinamento light onde tudo é, no fim de contas, possível e isento de punição. Não existe já um enquadramento legal que possa castigar os comportamentos irresponsáveis de que muitos inclusive se envaidecem?!

A menos que haja um verdadeiro confinamento, em que todas as escolas sejam encerradas e todos os serviços não essenciais – incluindo o café do bairro onde os domingueiros continuam a reunir-se para tomar café e ler o jornal; que os incumpridores sejam efectivamente punidos; que as pessoas se consciencializem da fragilidade deste Serviço Nacional de Saúde que já não as consegue proteger; que haja uma requisição dos privados; que exista uma adequada resposta social para prestar cuidados aos que não precisam de internamento mas precisam de cuidados por serem de alguma forma dependentes – o número de mortes por Covid-19 e não Covid-19 vai continuar a disparar. Iremos chegar ao cúmulo em que uma fratura do colo do fémur só será operada muitos dias depois, ou uma apendicite poderá matar por um inevitável atraso nos cuidados, ou um politraumatizado falecerá no local do acidente por não haver ambulâncias que o transporte ao hospital.

Pensem nisto quando forem fazer o passeio higiénico, ou comprar 150g de queijo ao supermercado hoje e uma alface amanhã, ou quando forem dar uma palavrinha ao vizinho.

Pode ser alguém muito vosso a sucumbir. Na verdade, por muito saudáveis que sejam, podem ser vocês.

* por Dra. Renata Aguiar
Médica Reumatologista no Centro Hospitalar do Baixo Vouga
Texto publicado originalmente em www.ruadireita.pt e cedido pela autora ao abarca.

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