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08 FEV 2021
OPINIÃO | "Mãe", por Maria João de Sousa Carvalho
Por Jornal Abarca

Foi ela que me ensinou a sonhar.

Nos fins de dia, à janela da rua dos Jerónimos, ela falava do sonho de termos uma casa branca com uma roseira a trepar. Rosas vermelhas. O sol punhase para o lado do mar, barcos, muitos veleiros num Tejo vagaroso como são os rios antigos e os sonhos. Foi ela que me mascarou de pierrot num carnaval cinzento, sem conseguir ultrapassar a timidez que me impediu de passar o portão do prédio e andar na rua como as múltiplas varinas estilizadas, minhotas e pescadores que corriam alegremente atirando serpentinas e papelinhos. 

Mas também foi ela que me ensinou que a mentira era uma coisa muito feia quando declarei que sabia ler. Muito zangada, virou o livro, abriu na última página e ordenou que lesse, sempre repetindo que mentir era muito feio. E eu li. Na família foi um rebuliço. Meu avô descompôs toda a gente porque eu era demasiado pequena para me ensinarem a ler. Ela protestou que tinha sido por minha iniciativa e sem ninguém interferir, pelo Método que ele criara para ensinar os surdos-mudos. Meu avô desesperou-se e levou todos esses livros de casa. E fez-se silêncio sobre esse assunto pecaminoso. Só quase no fim da sua vida ela teimou em relembrar esse facto, já sem pecado, mas como uma glória. E só por isso ainda se recorda o feito extravagante. O Método apenas voltei a vê-lo por bondade e paciência de um amigo de um amigo que o descobriu na Biblioteca Nacional. 

Isto tudo antes de aprender que os sonhos nem sempre se cumprem. Tivemos uma casa branca, mas nunca uma roseira trepou pelas paredes; aprender a ler foi um fado. Li e escrevi, sempre com uma grande atracção pelas palavras, pela língua portuguesa. Por escritores e artistas. Aprender a ler por aquele Método foi uma ferramenta que me acompanhou a vida inteira e me facultou a capacidade de ler muito mais rapidamente, tão rapidamente que meu pai, não conseguindo fornecer-me mais e mais livros, me ofereceu um dicionário como livro de cabeceira. 

Mas foi ela que me deixou sem saber o que fazer dos sonhos quando partiu há precisamente vinte e quatro anos.
E agora, mamã?

Porque não sei mentir,
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim — meu principal motivo
De insatisfação –,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não sei me conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.

Miguel Torga (1907 – 1995)

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