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03 MAR 2021
CONTO | "A Lenda de Belisandra"
Por Manuel Fernandes Vicente

Em tempos que já há muito passaram, mas que a atual pandemia da Covid-19 traz de algum modo à memória, terá ocorrido na aldeia de Castelo Novo, no concelho de Fundão, um singular episódio que a população atual da aldeia que se tornou, como muitas outras no país, num lar de idosos a céu aberto, ainda conta e recorda com nostalgia e muita emoção.

Vivia num casebre, nas imediações da aldeia, uma rapariga chamada Belisandra, com a qual o povo de Castelo Novo estabelecera uma estranha relação. Em privado, e estando aflitas ou ficando sobressaltadas por alguma razão, as pessoas procuravam-na na sua humilde casa, onde Belisandra vivia tendo como única companhia a do seu gato. E levavam-lhe os seus temores, ansiedades, desejos e caprichos para que a rapariga pudesse interceder em seu favor, lhes desse uma palavra e um conselho decisivo ou lhes providenciasse alguma mezinha, com os preparos de raízes e folhas de plantas que ela colhia secretamente por aquelas serras, pois só ela conhecia os segredos dos seus princípios. Eram sobretudo as mulheres que a procuravam, jovens ou mais idosas, por males de amores desencontrados, perfídias, deslealdades, infertilidades e mais um longo cortejo das misérias da condição humana, ou então heranças e doenças graves e desenganos dos médicos ou mesmo quando alguém já estava no limbo da morte. A Belisandra atribuíam poderes cósmicos, sobrenaturais, que controlava o sol e atraía ou afastava a chuva, as faíscas e os ventos, consoante o caso e o que fosse necessário. Até na forma como se poderia ter filhos varões ou meninas perfeitas. Ela tinha um dom, os seus saberes, vindos de um talento próprio e do que recebera da mãe, Lisandra, e da avó Cassandra, mulheres também de virtude, como ela, ou pelo menos com a fama disso. A todas as visitas Belisandra ajudava, e depois disso a clientela ficava grata e reconhecida, como se a jovem fosse um oráculo e uma bênção para os seus males. Em privado, era assim…

Mas, de vez em quando, a rapariga precisava de ir à aldeia, à mercearia, ao talho, à padaria, a fazer algumas compras na praça. E aí ganhava vulto o coro negro da maledicência. Em conjunto, as mesmas mulheres que a procuravam desesperadas e furtivamente na sua alcova no arrabalde remoto em que vivia, riam agora de troça e zombeteavam do seu carácter e da sua condição de feiticeira. Em privado, devotavamlhe humildemente uma crença absurda e absoluta, o que Belisandra dissesse era decreto, cumpriam-lhe com zelo os preceitos que ela ditava e mostravam gratidão. Mas em público, com as amigas, no largo da aldeia, nas ruas ou nos cafés davam-lhe chacota e escárnio, voltavam-lhe as costas e ostracizavam-na como se fosse ralé, considerando-a de uma natureza baixa e vil. Mas Belisandra ignorava todo esse desdém das senhoras e, se a voltassem a procurar para ficar de novo profundamente reconhecidas, como muitas vezes sucedia, fingia que de nada se apercebera e procurava corresponder ao que dela pretendiam. Belisandra dava-lhes o pavio do alívio, e as mulheres pagavam-lhe falando mal dela…

Numa bela e límpida manhã de um dia soalheiro, estava o povo concentrado e a conviver no largo do pelourinho da aldeia e ao longo das travessas, das ruelas labirínticas e dos becos vestidos de granito, quando ao longe, uma pequena mácula escura surgiu no céu, quem deu por isso pouco ligou. Era verão, e os campos à volta da aldeia estavam prenhes do pão e dos alimentos com que todos contavam para mais um ciclo de vida. Na terra, a maioria eram agricultores, fazendeiros, seareiros, ou trabalhavam à jorna, cultivava-se o milhomiúdo, o trigo, o centeio e a cevada, ou tratava-se da horta e da criação de coelhos, galinhas e alguma cabra, que eram também a sua mesa e até o conduto.

Mas a mácula escura que irrompera como um ponto num céu claro e azul transformara-se agora numa mancha já considerável, e, à medida que misteriosamente se aproximava, parecia cada vez maior e mais escura e ameaçadora, atraindo também cada vez mais a atenção popular. À medida que a iam avistando, preocupadas, as pessoas iam acorrendo para o largo. Era no largo da aldeia, com o seu pelourinho, que tudo se sabia, discutia, descobria e especulava. Era o centro físico, a alma e o nervo daquele corpo grande de grandezas e misérias − era dele que irradiavam a cultura, os costumes e as bebedeiras. Um pressentimento estranho e alarmante começou a pairar no ar. O que seria aquilo? Ninguém compreendia o que lá vinha de tão longe. E, num ambiente já de trevas e de sufoco, a mancha tornara-se numa nuvem escura, compacta e enigmática, tanto que já quase não se conseguia respirar debaixo dela −, e, logo num ápice, vários dos presentes se aperceberam de que material era formada.

− Gafanhotos, são gafanhotos!, exclamaram alto e bom som vários deles.

E era mesmo um manto de gafanhotos, agora já não tão silencioso, que passava sobre as suas cabeças, de tal modo que já não se viam nem ouviam uns aos outros.

Todos ficaram alarmados com a confusão do que viam agora. Eram milhões os gafanhotos que passavam, e ninguém sabia para onde iam. De ouvir falar os seus avós, há muitos anos uma praga de gafanhotos terá estacionado por lá, e depois a fome foi muita. Tudo o que tinham e era seu estava nas searas, nas hortas e nos animais, e estava agora ameaçado por esta praga bíblica…

− O que será de nós se eles vão para os nossos campos e para as hortas? O que será de nós…?, gritava uma velha ao fundo do largo, ficando o seu eco a bater várias vezes nas paredes, e sobretudo na mente de toda a aldeia, pois ninguém ficara em casa, exceto Belisandra.

E foi dela que todos de imediato se lembraram. Belisandra tinha poderes inexplicáveis, e o medo da fome e da miséria tornou as mulheres corajosas e, em conjunto, e já não às escondidas, foram à sua casa e pediram-lhe ajuda e que intercedesse para evitar as consequências trágicas daquela praga.

− Vocês, todas e todos, devem fazer uma procissão à Senhora da Misericórdia, que só ela vos poderá valer…, aconselhou a jovem.

E assim logo fizeram. E o que a lenda conta é que ainda vinha a procissão a sair no adro da igreja e já choviam gafanhotos mortos no adro, no largo e por todo o lado. O povo, devoto, ficou reconhecido. E ainda hoje, no mês de setembro, os de Castelo Novo, que são gratos e têm memória, saem em procissão em honra de Nossa Senhora da Misericórdia.

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