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14 ABR 2021
OPINIÃO | "Air Dorothy - Uma Experiência Demasiado Azul, Não Acham? (Don´t You Think So?)", por José Alexandre
Por Jornal Abarca

São Francisco, 2010

Embarco para Bismarck, North Dakota, na fronteira com o Canadá, coisa de 3 horas de voo, estilo ponte aérea de camada atmosférica quente para outra bastante fria. Por experiência antecipada, promete bons solavancos, mas assim é a vida. Mal sabia eu que o maior deles, ia começar tão cedo. Senta-se a meu lado uma avozinha do midwest americano, a revelação mais diabolicamente azul que já vi - olhos cristalinamente azuis; cabelo prateado com madeixas azul-claro, azul-escuro, o arco-íris em azul. Óculos pendurados ao pescoço de aros com estrias azuladas, blusão azul e branco com um garrafal “I LUVE FRISCO (Amo S. Francisco) ao peito, jeans estufados com botões acolchoados em azul; berloques nos pulsos a imitar águas marinhas. Se fosse música, só podia lembrar a Rhapsody in Blue de Gershwin. Pressinto desgraça opus 666 (o número do diabo, dizem). E não falha - mal se senta, ainda nem apertei o cinto de segurança, já me estende a mão; - Olá, o meu nome é Dorothy Piddick. E você, como se chama? Quando digo o nome, franze o sobrolho a repescar a memória: - Gee, that rings a bell (isso faz.me lembrar qualquer coisa) Alexander, Alexander…, não foi um general muito amigo de Moisés? Quando lhe lembro que Alexandre Magno não andou propriamente com as tábuas dos 10 Mandamentos, não se dá por achada: - Ah, claro, claro. Era grego, turco ou lá o que era. Mas foi muito valente, don´t you think so (não acha?).

Mãos ao trabalho, ataca-me em cheio - põe os óculos, abre uma bolsa de couro e tira álbuns de fotografias. Desaba-me a catarata do Niágara, sinto-me como gato encharcado, crivado por uma metralhadora e XVI (sim 16!) tenebrosos Capítulos: I. Teve montes de namorados (-Este é o Joe, agora é senador; este é o Tom, que tem uma cadeia de supermercados e aquele é o Jimmy que já foi vereador de Sta. Bárbara, todos tiveram sucesso na vida, don´t you think so?). II. Casou cedo (18 anos) primeiro com o Ted, Teddy Piddick, (-O meu vestido de noiva era muito bonito, don´t you think so?), depois com o Jimmy (já enterrou 2) e agora anda a ver se caça o Joe que ficou viúvo, uma boa chance, don´t you think so? III. É Republicana (- Odeio Democratas!). IV. Vive em S. Francisco vai para 30 anos (- Uma cidade ventosa mas muito agradável, don´t you think so?). V. está reformada dos correios, é voluntária da Cruz Vermelha (- Temos que nos ajudar uns aos outros, don´t you think so?).  VI. Vai agora ajudar a preparar o peru no Thanksgiving (Ação de Graças): - Sei fazer um molho para o peru que despertava inveja ao Teddy, coitado, morreu faz 1 ano, Deus o tenha em descanso (pausa para reflexão digna de uma viúva que se preza); soma e segue, VII. - Ele gostava de fazer alguns petiscos, é verdade. Mas nunca aprovei, cozinhar é só para as mulheres. Que os homens façam grelhados no 4 de Julho, já chega, don´t you think so?

Torrencial. Catastrófico. Apocalipse, que mal fiz eu, meu Deus? Olho à volta, a pedir socorro aos outros passageiros, mas nada, Nem a hospedeira. Aliás, mal dá espaço para os snacks que oferece, porque bancos, mesinhas, encostos das cadeiras e até o chão à nossa frente, tudo são fotos semeadas ao Deus dará…;VIII. Seguem-se os filhos, filhas e netos (- Muito giros, don´t you think so?); IX. Noras e genros (- Boas pessoas mas um bocadinho egoístas…). X. Sobrinhos, sobrinhas e namorados respetivos. Acabou? Não, não acabou, aí vêm mais. XI. Vizinhos de Francisco, Los Angeles, etc. (Vê-se logo serem boas pessoas, don´t you think so?); XII. Fotos autografadas de Ronald Reagan, Al Pacino, Paul Newman e Meryl Streep (- Grandes atores, don´t you think so?). Ó senhores, ela agora abre o fecho esquerdo da sacola, ainda há mais!? XIII a XXIII - As “fascinantes” viagens que fez com o Teddy, ao longo do abençoado matrimónio (média de 1 a 2 álbuns por viagem) – Grand Canyon, Yellowstone, Wyoming, Disneyworld, Cape Kennedy, Hawaii, Washington, New Orleans, para não esquecer Paris-France, Rome-Italy, Athens-Greece (graças Deus que fica por ali, porque se chega a Lisboa é muito capaz de dizer, Lisboa-Espanha).Como tudo é devidamente acompanhado de comentários à velocidade da luz, nem preciso de repetir o eco, don´t-you-think-so, don´t-you-think-so?

Finalmente a hospedeira intervém como boa profissional que se preza; pergunta-me com um sorriso compadecido, se quero beber outro café porque aquele estava certamente frio. Com tantas fotos, mal tinha bebido fosse o que fosse. Agradeço, yessss, please! E a hospedeira com ar diplomático, mas firme, arranja espaço na mesinha, põe de lado os Himalaias de fotos, abre uma clareira para o meu pobre café. Resta-me o único recurso que a condição humana permite – ir à casa de banho. Porque não pensei nisso mais cedo? A salvo! Lavo as mãos, respiro fundo, mal me reconheço ao espelho (sou eu? E agora que faço?). Mas mal tento criar energias para o próximo assalto, Aleluia, Aleluia, o piloto anuncia que vamos aterrar em Bismark! Mas mal aterrámos, persegue-me até ao carrossel das bagagens: - Não precisa de apanhar taxi para o hotel, os meus filhos dão-lhe boleia e levam-no amanhã mostrar os arredores de Bismarck e depois almoça as minhas panquecas com fígado de coruja e mostarda, uma especialidade, vai adorar, don´t you think so?

In extremis, sou salvo pelo motorista da empresa com que me vou reunir. Lá está ele, de cartaz em punho, para me apanhar. Identifico-me, pega-me na mala, respiro fundo 30 vezes. Agora sim, L-I-V-R-E. O motorista olha-me pelo retrovisor, sorri e comenta ser bem conhecida, vem a Bismark cada 2 meses, poucos escapam às derrocadas de fotos e histórias de família. É conhecida como a “Diabólica Dorothy”.

Se Freud fosse vivo, acredito que a teria identificado como causa traumática de cacofonias. O Don´t you think so? (a propósito, pronuncia-se, dõtchãiúfinquesâu), desperta-me um ódio gelado que me sequela pelas décadas mais próximas. Ou seja, inclui sim senhor, quaisquer papagaios, periquitos, catatuas e demais aves de arribação (como candidatos às autárquicas ou à nossa inútil - perdão, queria dizer fútil – AR), que me ousem soprar a mesma retórica, dentro ou fora de aviões ou comícios, juro! Mas enfim, com inaudita paciência, fui ou não digno da gesta de alguns assinalados lusitanos, apesar de incorrer no risco ser também arrasado por conta dos pastéis dos Jerónimos (vulgo, de Belém, horrivelmente próximos do Padrão das Descobertas, brrr…), de que a escória “descoberta” (para anexar à “descobridora”, na base dos 50/50, isto é uma de-mo-cra-cia ou o quê?) eram e são fanáticos? Olhem, feitas as contas, acho que sim. Apesar das “livres e imperiais” tintas com que o penso, o esborrato e escrevo.

E agora sou eu que pergunto:  

- Don´t you think so?

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