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16 MAI 2021
OPINIÃO | "Lita", por Maria João Carvalho
Por Jornal Abarca

Por vezes, dependurada na poalha dourada da memória surge-me a Lita nas suas vestes medievais negras, saia até os pés e na cabeça o lenço preto enfunado como os das monjas antigas. Fala-me na voz fininha da Nau Catrineta, que ela não deve ter visto porque nunca viu o mar. E o mar ali, a duas léguas de distância! Arregalavam-se-me sempre os olhos quando me falava de terem posto de molho as solas das botas, como fazíamos ao feijão, mas as solas eram tão duras que não as puderam comer. Aquilo das solas não me soava bem. Já a princesa Magalona era mais aceitável e até acho que ela a conhecera, naquele estado de presente e outrora em que se mantinha. Mas as princesas também não eram muito do meu agrado, embora não ousasse pôr em causa as suas amizades, deixava que contasse e nem ouvia metade.

A Lita nunca foi tratada por mãe ou avó apesar de ser mãe e avó e a matriarca daquela família. Era a Lita. Nunca a vi na mesa das refeições, não devia precisar de comer, nem oferecerem-lhe qualquer mimo pelo Natal ou aniversário. Não sei mesmo se nascera. Nem onde. Não nascera, sobrara dum tempo antigo esquecida pelas voltas da vida. Vivia entre o lar, onde um enorme fogão a lenha palpitava empolgado e a bancada com tampo de ardósia, onde amanhava com o vagar e a minuciosa precisão de relojoeiro uma galinha, um pato, uma mancheia de feijão verde. Pela tarde, sentava-se comigo no banco de pedra a debulhar feijocas para a sopa, ajudava-a a ugar os lençóis, dobrar em complicado quebra-cabeças as peúgas, como a minha mãe me ensinara. Fazia aquela sopa porque eu gostava. Eu nessa época não gostava de comer, mas a sopa da Lita era outra coisa. A sopa da Lita não era deste mundo.

Só saía de casa nas madrugadas da feira semanal para comprar preciosidades de sua preferência: umas cebolas, certa qualidade de batatas, uns metros de pano preto que costurava sei lá onde, talvez no mesmo sítio em que comia.

Um dia, tinha desaparecido o fogão a lenha, substituído por outro eléctrico, sobre a ardósia estava uma máquina para fazer bolos, uma espécie de britadeira em aço onde se metiam ovos, açúcar e farinha e a Lita ausente. Explicaram-me que tinha morrido. Não acreditei. A Lita, que vivia entre o agora e o outrora, por certo dissolveu-se na fuligem da chaminé, numa noite de nevoeiro espesso em que só a custo se lobrigavam as torres do mosteiro e anda por aí, talvez tenha ido ver a Nau Catrineta ou conte como eu era à princesa Magalona.

Na minha cabeça, aquele nome Lita não devia ser verdade e uma tarde perguntei-lhe como se chamava. E ela respondeu na sua voz fininha: Deolinda!

 

Lá vem a Nau Catrineta,
que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar."

Passava mais de ano e dia,
que iam na volta do mar.
Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.

Já mataram o seu galo,
que tinham para cantar.
Já mataram o seu cão,
que tinham para ladrar."

"Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.
Deitaram sola de molho,
para o outro dia jantar.
Mas a sola era tão rija,
que a não puderam tragar."

………………………….

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