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13 JUN 2021
OPINIÃO | "As Borboletas Não Foram à Índia", por Maria João Carvalho
Por Jornal Abarca

 

Em Julho, o campo em frente à nossa janela era todo de linho em flor até lá acima, à ermida.

Ainda havia uma parede grossa que restava de um prédio pombalino a que tinham chamado palácio da fome e onde, diziam, tinha vivido uma rapariga suave a que alcunharam de “fome, peste e guerra”. Logo a seguir, numa colina, a vacaria, vaquinhas a pastar e onde por vezes os soldados de cavalaria vinham fazer exercícios a toque de clarim. Mais adiante o forno da cal, uma nascente onde íamos pelos fins-de-tarde buscar uma bilha de água, uma capela que ficou na zona do estádio, o que restava do enorme tanque da Casa Pia, duas paredes em ângulo onde a família Vareta fazia carvão para vender. A cerca da Casa Pia ainda era de pau a pique, o que era uma grande vantagem dado que era por aí, afastando as tábuas, que o meu avô fugia das polícias políticas até à casa do poeta Augusto Gil, a morrer tuberculoso, sempre que o vizinho do lado denunciava a sua presença em casa. O vizinho, prestimoso, ia à esquadra, ao lado do Palácio de Belém, fazer a denúncia; o chefe, que era coxo, mancava rua dos Jerónimos acima, esfalfando-se a avisar o meu avô; o meu avô fugia pela cerca até à rua das Pedreiras onde o poeta se finava.

O campo estava sempre lindo nesta época. A minha avó levava-me por ali até à ermida, onde me apresentou Vasco da Gama, depois da missa que antecedeu a partida para o caminho da Índia. De pé, no portal, grande manto verde suspenso dos ombros, na cabeça um gorro preto aos gomos, afagou o punho da espada, compôs o medalhão que fechava o cinto, imponente e vistoso. Foi descendo pelo campo, pisando as flores vermelhas do linho com as suas pantufas de veludo verde, até ao Tejo onde as naus esperavam, ali onde haviam de construir a Torre de Belém, à direita o bairro económico, por todo o lado as vivendas da gente de posses, depois, muito depois o estádio de futebol e aquele emaranhado de caixotes onde vivem milhares de pessoas. Seguiam-no um bando de borboletas amarelas.

Muitas vezes espreitei pelo buraco da fechadura da ermida e lá andavam as borboletas, voando em bando. As borboletas não foram à Índia.

 

Fado português

O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.

Ai, que lindeza tamanha,
meu chão, meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.

Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.

Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.

Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro veleiro
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava

José Régio (1901 – 1969)

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