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23 SET 2021
OPINIÃO | "Miguel", por Maria João Carvalho
Por Jornal Abarca

Enquanto no ecrã a Miss Marple se desdobrava em explicações prolongadas e hiperbólicas sobre quem poderia ter assassinado a bailarina de vestido cor de rosa, três homens que os meus olhos não conseguiam distinguir uns dos outros, todos parecidos com o meu tio Bernardino, isto é, fato completo castanho, brilhantina no penteado à contabilista dos anos quarenta e sorriso congelado de corvina de olhos baços, fui à cozinha lavar uns copos. Que o meu tio Bernardino em nada mais se assemelhava aos três homens de fato completo, o assassino, o polícia e o detective, tirando o fato e o corte de cabelo, tirando enfim aquela vez que pôs no bule de chá cem gramas de potassa e a minha avó se recusou a beber e mandou analisar a mistela, tirando aquelas noites em que acordava a família empunhando a faca da cozinha e exibia na porta dos quartos a minha tia agarrada pelo pescoço e “agora é que a vou matar”, como da última vez que o vi, às quatro e tal da madrugada, imediatamente antes da batalha aérea que travaram, escaqueirando contra as paredes aquelas terrinas sem tampa que a minha tia enchia de areia da praia e em que depois espetava flores de plástico em arranjos dignos de dia de finados em cemitérios do norte. Depois vi-o da janela, estugando o passo, o televisor debaixo do braço, em direcção à paragem do autocarro, na madrugada cinzenta, como num filme antigo de guerra ou coisa assim.

Mas, vinha eu de lavar os copos, pus outra vez a rodar as congeminações da Miss Marple, quando tocou o telemóvel.

Como um pingo de chumbo em brasa caiu a notícia fatal. E todas as notícias definitivas são chumbo em brasa na nossa alma. O irremediável não se pode medir em grau de sentimento, tristeza, desgosto, incapacidade de um gesto, a mão estendida no vazio. Só o vazio.

Na tarde quente, o vazio.

A Miss Marple deve andar ainda a resolver o caso da bailarina, eu mudei de óculos e já não confundo contabilistas dos anos quarenta com o meu tio Bernardino, mas a impotência ficou com o vazio.

 

Na Mão de Deus

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depois do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!

Antero de Quental (1842 – 1891)

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