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20 ABR 2022
OPINIÃO | "A Guerra", por Maria João Carvalho
Por Jornal Abarca

A guerra começou quando eu tinha 15 anos e recebi uma carta dum amigo de Almeirim a despedir-se, porque fora mobilizado. Enviava uma foto fardado e ia para Angola.

Por essa época fizeram-se manifestações, multidões encheram o Terreiro do Paço a aplaudir Salazar e a pedir à Senhora de Fátima protecção para os rapazes que iam para a "guerra que nos foi imposta do exterior" e os jornais enchiam as primeiras páginas de fotos dos governantes fardados e títulos caixa alta a negro acusando o tal exterior de nos condenar a lutar. A juventude masculina encheu os paquetes transformados subitamente em transporte de militares, os oficiais na primeira classe, a ralé nos porões. O primeiro momento foi de choque emotivo, desvalorizando até a situação, a guerra duraria pouco, desenrolava-se muito longe, nas Colónias, incomodava mas... Mas o meu pai lia os jornais com uma lupa especial e não acreditava na hipocrisia das notícias, nas manifestações de apoio ao ditador, nem na justeza da guerra. Aliás o meu pai não acreditava em guerras justas, muito menos em divindades a salvar vidas de soldados ignorantes que enchiam o ventre de navios sem saberem porquê.

Apareceu um movimento de mulheres, como sempre há quem se disponha a ajudar carinhosa e desinteressadamente as vítimas de uma qualquer calamidade, e não era exactamente um movimento de mulheres, era um movimento de senhoras. A Europa estava no século 20, mas Portugal tinha ficado vitoriosamente no século 19, eram senhoras portanto. As senhoras, de casacos de peles e apelidos sonantes, formaram o Movimento Nacional Feminino e angariavam cigarros para os soldados.

Uma tarde, uma senhora distinta telefonou convidando a minha mãe para colaborar num peditório, levando-me também. Era a ajuda que as mulheres e filhas dos médicos da terra se propunham dar para esse tal Movimento. Respondi logo que não ia. Mas a minha mãe, que gostava de apreciar as coisas de perto, decidiu que íamos sim e se veria depois. Fomos a um chá esplêndido, a rainha Vitória não teria apresentado melhor, até teria sentido inveja das iguarias que ali se serviram e durante o repasto foi explicado que tinham dividido a vila em zonas, cada uma das senhoras pediria apenas na sua zona e a minha mãe achou, mais uma vez, que tinha de ver como era. Calhou-nos a zona mais pobre. Assim como a outra senhora de saudosa memória. Percorremos aquelas ruas com uma saca, selada com uma lata ranhurada, por onde as pessoas metiam as ofertas. Houve casas onde eu perguntei à minha mãe se pedíamos ou dávamos uma esmola qualquer.

No fim do dia, em Julho fazia muito calor, depois dum duche, fui só eu entregar a lata em casa da senhora organizadora. Cheguei tarde, já só havia restos de trouxas de ovos e migalhas. Entreguei a lata e um rol de ofertas que não era possível transportarmos e aguardei que a senhora conferisse o lucro para os cigarros e assim dos nossos soldados.

A senhora fez uma cara de vivo pasmo, saiu da sala onde só estava eu e voltou muito preocupada: "parece impossível, tu e a tua mãe e a Bibita, que tiveram as zonas mais pobres, foram as que mais contributos conseguiram. Não percebo!"

Mas eu percebi.

Jurei à minha mãe que nunca mais daria para qualquer peditório.

Ela também ficou elucidada.

E o meu pai, da cadeira onde lia um jornal, rematou com uma memória de família: "os nossos pobrezinhos ainda nos ficaram a dever uns trocos".

Mas outra senhora que pouco depois comprou um casaco de astracã decerto também achou uns trocos.

As guerras são hoje como foram sempre. Carnificina, hipocrisia e lucro.

Durante essa guerra, que afinal durou 13 anos, sacrificou-se uma geração de rapazes. Portugal poético e vitoriano encontrou-se do outro lado da civilização sem saber como nem porquê, o ditador morreu, num final envolto em mentiras, um jornalista inventou um programa na rádio onde dava notícias da guerra a mães desesperadas "senhora Maria, o seu filho encontra-se bem" e o filho da senhora Maria a entrar-lhe pela porta dentro dum caixão sinistro.

Oficialmente, nunca houve guerra.

Enchia-se o Terreiro do Paço com soldadinhos de chumbo em cada Dia da Raça, era assim que se chamava o 10 de Junho, para distribuir medalhas a heróis ignorados e a Senhora de Fátima com os cordões de ouro das famílias pobres.

A guerra é sempre abjecta.

 

APROVEITANDO O ENSEJO...

Sonhar
Mais um sonho impossível
Lutar
Quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
É minha lei, é minha questão
Virar esse mundo
Cravar esse chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão

Chico Buarque (1944)

 

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