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20 JUN 2022
OPINIÃO | "Nauru", por Ricardo Rodrigues
Por Jornal Abarca

Desde o início da guerra na Ucrânia e o consequente e exemplar acolhimento por parte dos países europeus de refugiados vítimas do conflito que, recorrentemente, se levanta o tema da hipocrisia dos Estados europeus, como se existisse refugiados de primeira e de segunda.

De facto, existem. E a base dessa diferenciação é uma questão racial. A Europa, resultado de anos de imperialismo e colonialismo, é um continente racista. A maior evidência disso é o próprio tratamento dado: os brancos são refugiados, mas os negros são migrantes. Como se um termo fosse digno de dó, mas o outro trouxesse desconfiança.

O exemplo mais flagrante dessa dualidade é a Polónia. O país que já acolheu mais de três milhões de ucranianos desde o início da guerra é o mesmo que, precisamente, um mês antes da invasão russa tinha iniciado a construção de um muro com 100 quilómetros ao longo da fronteira com a Bielorrússia para impedir a entrada de refugiados vindos do Médio Oriente.

Mas há algo que não aceito: a ideia de que a Europa tem de ser a salvadora do mundo. Será cruel colocarmos estas questões quando falamos de vidas humanas, mas o objectivo não passa por relegar o valor do ser humano. Nunca. A ideia principal será a de obrigar outros países a assumir um papel que também tem de ser seu. A Europa está a fazer a sua obrigação neste conflito, até pela noção de que – ao contrário de outras – esta guerra pode colocar em risco a estabilidade do mundo. Com problemas graves para resolver, a Europa não pode carregar sozinha o peso de salvadora do mundo. Onde estão países como os EUA, o Japão ou a Austrália?

Peguemos neste último exemplo. O leitor já ouviu falar de Nauru? Trata-se de uma ilha no meio do Pacífico, com apenas 21 quilómetros quadrados, cujo pedaço de terra mais próximo fica a 300 quilómetros e que distancia mais de quatro mil quilómetros de Camberra, capital australiana.

No início do século XX foi descoberta uma enorme reserva de fosfato que tornou a ilha num pedaço de terra bastante rico. Assim, todos os metros quadrados da ilha foram escavados para extrair o fosfato, esgotando rapidamente as reservas de recursos naturais e convertendo Nauru num dos países mais pobres do mundo.

Assim, nada mais restou ao governo de Nauru, que é um Estado independente, do que aceitar um acordo com a Austrália: em troca de fortes apoios económicos que permitem que Nauru continue como um lugar habitável, o país acolhe há mais de vinte anos um centro de detenção para refugiados que chegam à Austrália. Isto é, a Austrália paga a Nauru para deportar os refugiados que lhes chegam. Cruelmente, a Austrália designa este processo como “Solução Pacífica”.

Será, certamente, uma solução pacífica para a Austrália que coloca os interesses económicos acima da condição humana. Trouxessem estes refugiados dólares nos bolsos e um qualquer “Visto Gold” comprava-lhes a liberdade. É de uma desumanidade inimaginável para quem tem de passar por isto. Todos os anos há dezenas de homens, mulheres e crianças que são separadas das suas famílias e ficam detidas em Nauru por anos. Organizações, como os Médicos Sem Fronteiras, já alertaram que há taxas altíssimas de pessoas com pensamentos suicidas, psicoses e outras doenças mentais, síndrome de resignação ou episódios traumáticos.

Em mais de duas décadas foram escassos os relatos sobre isto. Ninguém ouve, ninguém vê e ninguém fala: nem a ONU, nem os outros Estados, nem a comunicação social e, muito menos, a sociedade civil. Não imaginem apenas como seria se a Ucrânia não fosse na Europa. Perguntem: o que seria se a Austrália fosse na Europa?

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