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20 SET 2022
OPINIÃO | "Sentimento de Revolta", por Jorge Carreira Maia
Por Jornal Abarca

Um filme de 2021, Ouistreham, do francês Emmanuel Carrère, coloca um problema político interessante, apesar de este acabar por ficar ocultado sob uma questão moral. Em linhas gerais, trata-se da história de Marianne Winckler, uma escritora, que decide escrever sobre as pessoas que vivem de trabalhos precários, no caso, os serviços de limpeza. Disfarça-se de trabalhadora de higiene e passa a trabalhar na limpeza de um ferryboat que faz a ligação entre França e Inglaterra. Ela não só acompanha a sorte desses trabalhadores, como a vive na sua plenitude. Faz, inclusive, amizade com duas dessas trabalhadoras. O problema moral diz respeito ao facto dessas amigas se sentirem traídas ao descobrirem quem ela é. Não é, porém, a moral que me interessa.

O filme mostra a vida de pessoas que são, para muitos de nós, completamente invisíveis. Sob a crosta de comodidade na qual decorre parte significativa da existência escondem-se autênticos exércitos constituídos por pessoas que vivem muito longe dos níveis de comodidade das classes médias. A sua característica fundamental é a invisibilidade, mesmo quando estão perante os outros, estes não as vêem A esta invisibilidade corresponde um trabalho duríssimo. Os ritmos da limpeza de quartos, casas de banho, etc. são elevadíssimos e a penalização para atrasos pode ser drástica, o despedimento. Toda esta gente – e no filme os trabalhadores são quase todos franceses de origem, digamos assim, embora também existam imigrantes ou descendentes destes – vive vidas sem sentido, destituídas de qualquer fantasia, a não ser a de poder abandonar aquele tipo de existência. Onde está o problema político?

Desde o século XIX até ao último quartel do século XX os trabalhadores reconheciam-se em determinados partidos políticos, os partidos sociais-democratas e os partidos comunistas, e possuíam, mais ou menos desenvolvida, aquilo que se denominava consciência de classe. Era esta que os orientava nas suas opções políticas e na própria vida. Ora, todos estes trabalhadores precários estão longe de possuírem uma consciência de classe e os velhos partidos operários implodiram ou abandonaram as causas originais. Estas pessoas invisíveis, como o filme mostra, têm sentimento da sua situação, mas este nem sequer é um sentimento de classe, mas de revolta contra o mundo que os deixa ali. São uma parte importante dos votos na extrema-direita e, se têm um sentimento político, é o de implodir o sistema democrático e liberal. O filme é francês, mas poderia ser realizado em Portugal ou em muitos países da União Europeia.

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