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01 JUL 2017
(BULHÃO) O PATO NOSSO
- MEMÓRIAS E QUEIJINHOS DE TOMAR EM 31 HORAS
Por Jornal Abarca

Monte da Caparica, Almada, Abril de 2004

Em primeiríssimo lugar, se após lerem o título acima, os leitores vêm aqui salivar ad abundanciam, a humedecer torrencialmente as papilas gustativas em reflexo Pavloviano por conta de ameijoas, mexilhões, navalhinhas, ostras, berbigões e demais bivalves de Lineu, por favor, esqueçam. Saiam destas linhas modestas (mas não servis) e deliciem-se com qualquer outra crónica dos meus caros colegas de desabafos de linhas, bem mais prendados do que eu. Foi um prazer, adeus e até ao mês que vem.

Ah, mas…ficaram? sempre querem continuam a ler?

Ora, muito me honram em nome e preito do anfitrião aqui recordado - Raimundo António de Bulhão Pato (o “nosso Pato”, para os amigos), basco de batismo (Bilbau, 3 de Março de 1828, reina em Portugal, D. Miguel), mas português de quantos costados tinha o seu vício ancestral de cromossomas. Sugiro imaginar que ainda anda por aqui (bom, por aqui, está - desde 28 de Agosto de 1912, e bem mais enraizado na sepultura de Monte da Caparica que escolheu), deliciado com o voo das gaivotas e cheiro da maresia da foz do Tejo. 

O busílis é simples - por amor aos vossos mui dignos oragos e santos padroeiros; por muito bem querer às vossas senhoras avós, mães, sogras, tias, irmãs, primas até ao 6.º grau, donas de gastronomias de recôndito sigilo familiar; enfim, por isso tudo,não padronizem mais o pobre do Bulhão Pato! Já chega de lhe carregar no nome e por décadas a fio, um ameijoar de ementa que nunca concebeu. Quando muito foi especialista de caçar e saborear lebres, regadas com vinho de uvas morangueiras de Azeitão, era bom garfo e melhor copo, trocou mesmo receitas de caça com amigos, mas por aí ficou quanto a sabores.

E Bulhão nada tem a ver com o famoso Mercado do Bolhão, no Porto (bolhão = poça, grande bolha de água que se formava quando chovia). 

Após ter regressado a Portugal com a família, devido aos dramas da guerra civil carlista com que nuestros hermanitos se entretinham, o nosso Pato revela rapidamente ter um ADN de legítimo homo outrabandesis, almadensis per naturam, um amplus vir capariquensis. E teve a sorte de encontrar um mini paraíso, que bem descreveu - do alto da varanda, no Monte da Caparica, adorava arrecadar os dias a acariciar com as lunetas, as esfiapadas arribas da Trafaria e Porto Brandão; o espantoso presépio espraiado dos Jerónimos, Belém, Palácio da Ajuda (perto de onde morava o seu Mestre Herculano!), Ribeira, Terreiro do Paço, Castelo, Sé, Estrela, Santa Catarina, S. Vicente de Fora. Em dias de céu mais limpo, encantava-se duplamente - para o lado direito, com Cova da Piedade, Ginjal, Mar da Palha, o pintalgar do azulejado de Alcochete, a mancha branca viva das garças salineiras, sempre à bulha com um albatroz de poucas conversas, as cigarras do Montijo, os touros de Samora Correia, eram sempre motivos das suas peregrinações troteadas em charrete. E, para a esquerda, a pular o Tejo? Fácil – Algés, Caxias, Oeiras, o areal ventoso de Carcavelos, o encarrapitar da baía de Cascais; e, claro, a ossatura esverdeada, mas sempre fresca (Camões dixit) de Sintra, empinada na imponência visigótica do Cabo da Roca.

Ah, o Cabo da Roca! esse enigma de nariz esfíngico “onde a terra acaba”, rende a alma ao Criador “e o mar começa”, tudo nas contravoltas de partos sempre renovados, remexer titânico de ondas sobre ondas, a fervilhar de espuma, por vezes uma mão cheia de olas redondas, pareciam uma roleta de casino que mesmo sem bola, nunca deixa de girar. Enfim, padecimentos que o nosso Luís de olho fagueiro também sofreu quando dizem, por ali andou uma vez, por conta de ser cativo daquela cativa, irmã da que partiu como alma gentil descontente e prima direita da Leonor que foi pela verdura, fermosa e nunca segura).  

Mas adiante, chega.

Deixem-me arregaçar as mangas ao que venho: com esta nossa bendita mania nacional de aproveitar o mínimo descuido de recordar alguém ou episódio para nos auto ajoelharmos em sofrido confessionário na sanduiche de uma bica e cigarro, sorriam amigos meus, venha daí a este osso bucco de mais um belo paradoxo bem português - não somos realmente grandes especialistas em livros de memórias, exceto as próprias. Mas mesmo neste caso, esconde-se sempre bem quem as ditas, trata-se provavelmente de mais um “rei/rainha” local em traje de Adão/Eva, no meio de uma multidão divertida. E nem alguns ex-Presidentes da Republica fogem à regra, tão ativos estão agora de metralhadora em punho e a espanejar os cadeirões de Belém antes de alegremente irem cremar-se com honras de Estado.

Pois é, não temos Memorialistas dignos desse nome.

Ora Bulhão Bato conseguiu esse prodígio, nem mais nem menos. Soube usar muito bem as paletas e aguarelas – nem pinceladas que carregassem desnecessários elogios ou críticas, nem o desmaiar de parágrafos que nos deixem indecisos sobre serem nuvem ou borrão.

Poucos terão descrito com tanto detalhe os tempos da Lisboa de D. Maria II: os repetidos ciúmes matronais da rainha “Boa Mãe” ou “Rainha Parteira”; de como ela faleceu exatamente de parto, a 15 de Novembro de 1853, pelas 13 horas - os campanários de Lisboa começaram de uma ponta à outra, a dobrar sinos, em lenta mas sentida angústia até madrugada, sempre aquele reboar do bronze de despedida pelos cimos, vales e colinas, diz-se que até em Sesimbra, Cabo Espichel à Arrábida se ouviram os ecos dobrados do luto real.

Como também foi o caso de D. Pedro V (D. Pedro de Alcântara Maria Fernando Miguel Rafael Gonzaga Xavier João António Leopoldo Victor Francisco de Assis Júlio Amélio,uff!: as reais frequentes e discretas visitas totalmente informais, pela noitinha, sozinho, a pé, do pequeno terreiro do Palácio da Ajuda, ou a cavalo, quando vinha das Necessidades), sem gibão nem farda, até à casa quase contígua de Herculano, pronto para um café e discutir ao borralho como realmente fora Aljubarrota e Atoleiros; a genialidade de Fernão Lopes, a prudência de Fernão Lopes de Castanheda; o gigantesco ecce homo, chamado D. João II; o romance histórico, um género literário fascinante, desde o presbítérico Eurico que o Mestre andava a escrever, até Walter Scott, Victor Hugo, Lamartine, Chateaubriand, sabe-se lá quem mais. E as confidências que El-Rei fez ao Mestre do seu entusiasmo apaixonado e futuro casamento com D. Estefânia; bem como o pesadelo que logo desaba na cabeça da jovem noiva-esposa-rainha, com a particularidade de falecer de angina de peito, 2 dias depois de celebrar risonhos 22 anos (aniversário em 15 de Julho de 1859, falecimento 48 horas depois, em 17 de Julho).

E finalmente, o gemido De Profundis que todo o país soltou com a difteria contraída com a água inquinada com que o jovem monarca e seus irmãos aliviaram a sede depois de caçada por Vila Viçosa e que também levaram seus irmãos e depois ele próprio (11 de Novembro de 1861) para o túmulo. Como se disse naquele tempo, de 1850 a 1858, após tanta mortandade causada em Portugal pela cólera, febre amarela e varíola, tragédia assim e tão completa, só a da Peste Negra e a de Inês de Casto e D. Pedro I.

Como já disse, Pato teve a veneração de verdadeiro pupilo de Alexandre Herculano acompanhando de perto a elaboração da História de Portugal; as tertúlias literárias e históricas (célebre a desmistificação da Batalha de Ourique) resultantes das repetidas mordidas raivosas de jesuítas, abades, cónegos e demais batinas, cada uma mais radical e a espirrar mais rapé do que a outra; a poesia da Harpa do Crente, o pensamento, a crítica literária, a correspondência, a grande paixão agrícola; as pesquisas na Torre do Tombo, a vida política com ou sem Absolutismos, Cartismos, Saldanhismos e Cabralismos e por aí fora.

Pato relata também com devaneio o bom humor e incrível resistência física do Mestre - como Herculano o desafiou e a um amigo para irem a pé desde casa, no térreo da Ajuda, até ao Convento dos Capuchos, no topo da Serra de Sintra, saindo ainda de madrugada num dia e chegando nesse mesmo dia ao cair da noite. E assim foi. Só que Pato e o amigo chegaram derreados, caíram a pique numa colchoeta de palha e preparavam-se para sono de, no mínimo 12 horas. Nada disso, nada disso! Herculano no dia seguinte, ouve a missa dos fradinhos pelas 5 da manhã, sai logo a passear pela serra “para abrir o apetite” e foi  acordar Pato e o amigo, que horror!, 8 e meia da manhã, que falta de resistência da juventude portuguesa! E depois as más notícias – Pato é testemunha viva e dolorida da agonia e morte de Herculano, bem como de ter sido um dos primeiros nomes da subscrição pública para edificar o túmulo de mármore, atualmente nos Jerónimos.

Bulhão Pato teve também a humildade de ser um completo repórter, embora abuse aqui e ali dos adjetivos (pessoa finíssima; vontade férrea; alma bondosa; espírito indomável) mas como sintetizou, “generoso com os amigos, respeitoso dos inimigos”.

Nos três volumes das Memórias, deixou um raro painel de escritores, poetas, políticos, pintores, artistas, (Garrett, Mendes Leal, Columbano, Malhoa, Oliveira Martins, Raphael Bordalo Pinheiro, Andrade Corvo,Latino Coelho,Gomes de Amorime mais 40 e tal nomes de peso), fidalgos de digna cepa, ainda que por vezes meio ferrugenta bem como dos inevitáveis “almofadinhas” e “ampara-esquinas” do Chiado e Baixa alfacinha, nobres estroinas de fanática devoção pelo dolce fare nientissimo, a quem o sangue vagamente diluído em azul, não dava para humedecer mais que dois rabiscos de um bilhete e envelope a pedir uma librazinha ou 500 Réis a uma tia devota, amigo ou Conselheiro que sempre queria votos.

Sabe-se que o grão-sacerdote destes encómios é de longe o Eça. Mas Bulhão Pato tinha o seu jeito, embora andasse com aquele de candeias às avessas, tudo por causa de um tal “Poeta Tomás de Alencar” dos “Maias”, que se diz ter sido venenosamente decalcado no pobre do Pato.

Seja como for, de uma forma muito educada mas discretamente irónica, o nosso Pato também deambulou divertido por uma Lisboa feita pombal alcandorado em caturro de colarinhos espetados, embebidos em goma de sebo de cânfora; as damas de cabelos maneirísticos, super-encaracolados em funil, a cascatear os pescoços onde exalava ¼ de água de cheiro ou alfazema e ¾ de suor (banho completo só 2 vezes por mês, fazem mal à saúde); decotes rodados ou em V gótico, tão honradamente cristãos como tentadores (ah, quando elas se debruçam à nossa frente…), mas é para isso que serve a confissão na Quaresma, limpam-se os pecados com um PN e três AM, zás-trás, nunca falha.

Enfim, só falta mencionar os saraus pianístico-poéticos e de maledicência já muito elaborada, quase académica, digna de Teses de Mestrado (se os houvesse), as famosas noites lisboetas (a Srª Condessa de Alfaias recebe às 4ªas feiras, o Conselheiro Forjaz recebe às 6ªas…) das mansões à Estrela, à Lapa, ao Rato, às Amoreiras; Vossas Senhorias  para cá, Vossas Excelências para lá; as anquinhas e anquetas apertadas em cordames, laços e brocardos que faziam gemer de um lado, ventres, umbigos, anáguas, nádegas e barriguinhas femininas, amantes de Toucinho do Céu; e de outro (um horror, mas justo é dizer) algumas lutas aflitivas masculinas para evitar, ao sentar calças muito ajustadas num cadeirão de pé alto, a catastrófica ameaça de trilhar os testículos, ainda por cima quase sempre seguido do arranque intempestivo de algum cabelo púbico serpenteado que ousara implantar-se nesse oval anatómico, um esticão e estrelas (mas não necessariamente na Estrela…).

E aqui encerro a lengalenga do “meu” Pato, com a narrativa [1]do “progresso” nacional. Pato anuncia (Junho de 1899) que a viagem do Terreiro do Paço a Tomar era agora de apenas 18 horas de vapor (das 7 da manhã às 11 da noite) até Santarém e depois mais 13 horas de diligência (das 3 da manhã às 4 da tarde) de Santarém à confeitaria mais próxima onde servem Queijinhos de Tomar. Ou seja, “apenas” 31 horas, um dia e meio, quanto antes da fase do

vapor se demorava 3 dias, pelo menos.

Mais que as estatísticas e descontando a ironia fácil de adivinhar, a verdade é que são apontamentos deste tipo que nos permitem tomar o pulso de Portugal. Com este repenicar de quase 1900, do Terreiro do Paço ao Convento de Cristo, fomos mais uma vez modestos, chiquititos pero cumplidores.

Sem caricatura de outras cantigas de escárnio e pior mal dizer.     



[1] Memórias, II Volume.

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