Paris, Cemitério de Montmartre, Novembro de 1988
Não, o Abade Faria não foi quem ajudou Edmond Dantes a fugir da prisão e descobrir o tesouro da vingança. Estou cansado de ouvir sempre a mesma resposta - “Ah, sim, o Abade Faria, o tal do Conde de Monte Cristo”.
Numa questão de cruzada de resgate de memória, procurei o túmulo: disseram-me que estava por aqui, sem lápide, em local ignorado. Não desisti e percorri as sepulturas e suspirei de alívio - alguém finalmente teve a piedosa ideia de lhe colocar uma pequena tabuleta, a repor a identidade e obra: José Custódio de Faria – Goa 1746 – Paris 1819.
Continua a ser relativamente desconhecido entre nós, e sem dúvida tornou-se mais célebre por Alexandre Dumas (pai) ter utilizado o nome e figura no Conde de Monte Cristo, diluindo com a fantasia, a realidade de uma figura muito especial.
Sai de Goa para Lisboa com 15 anos e consegue que D. José I (1771) lhe pague uma bolsa para tirar doutoramento em Teologia em Roma (1780). Regressa a Portugal aureolado por elogio papal (prega um sermão na Capela Sistina, caso tão raro como quase único), mas rapidamente se envolve numa conspiração para a independência de Goa (Conspiração dos Pintos,1787) e foge para França, de onde nunca mais volta.
Em 1795 adere à Revolução Francesa,comanda mesmo um dos batalhões revolucionários. É preso em Marselha em 1797 onde fica numa cela isolada por cerca de três anos. É aí que começa a congeminar a base científica do Hipnotismo, com base na auto-sugestão, em vez de magnetismos, como defendiam então outros autores, Para ele, o magnetismo era apenas a origem de uma espécie de sono enquanto que o Hipnotismo podia explorar o sub-consciente e tratar algumas doenças derivadas.
Ou seja, o Abade Faria além de pregador, teólogo é o fundador do Hipnotismo como ciência, o primeiro a proclamar a doutrina de sugestão na hipnose.
Tornou-se uma coqueluche (1809) - professor de Filosofia na Universidade de Nimese membro da Société Medicale de Marseille; as famílias de classe alta atropelam-se para o consultar, vê-lo a exercer sessões de hipnotismo e curar casos de sonambulismo (um caso de sono lúcido), partindo da base de conseguir que a pessoa se “concentre” numa ideia ou objeto e uma vez em hipnose, possa deixar falar o subconsciente.
Vai mais longe - em 1816 defende uma nova teoria baseada no puro magnetismo animal, publica em 1818 “Da Causa do Sono Lúcido no Estudo da Natureza do Homem”, que causa escândalo e o coloca na classe dos charlatões, senão mesmo bruxos ou de “ter pactos com o demónio”, envolvendo-o num cenário de “mistério” até à morte. É confinado a capelão de uma pequena igreja e morre em Setembro de 1819.
Ou seja, 73 anos agitados, nervosos, de revolução, de defesa de novas ideias e de pioneirismo psíquico e porque estava muito adiante no seu tempo, ficou reduzido a um quase anonimato mas sempre envolvido num “mistério” de pura superstição, alimentado pelos médicos que se dedicavam também à hipnose. Como de costume, só depois da morte se começarem a ouvir vozes que o elogiam e defendem:
“Houve um homem em Paris que realizou sessões de hipnotismo. Todos os dias cerca de 60 pessoas iam a sua casa e era raro que entre elas, não houvesse cinco ou seis que caissem em transe hipnótico. Ele sempre reafirmou que não tinha nenhuns poderes especiais e que tudo dependia da capacidade de autosugestão das pessoas” - General François Joseph Noizet, Mémoires,1839.
“A Faria pertence o incontestável mérito de ter estabelecido em primeiro lugar a doutrina e o método do hipnotismo pela sugestão e de tê-lo nitidamente libertado das doutrinas singulares e inúteis que ocultavam a verdade. É na realidade, quem deu, antes de todos, a concepção nítida e verdadeira dos fenómenos de hipnotismo”- Professor H. Bernheim, Diários, 1891.
"Faria foi grande porque não tinha medo e lutava pela verdade do que por um lugar no capítulo de vaidade pessoal. Não há nenhum mistério - o “mistério” do Abade reside no seu talento, na sua coragem e na permanente procura da verdade; o “mistério” nada mais é de ter sido pioneiro no seu tempo e ter-se sacrificado ao atraso social e científico, abrindo mesmo assim o caminho para quem continuou a estudar a matéria."– Dr. Mikhail Buyanov, Presidente da Academia de Moscovo de Psicoterapia, 1949.
Uma figura percursora a estudar, fascinante a sua faceta pioneira. Mas quanto a nós, além do estudo do Prof. Egas Moniz, nada, zero.
Não seria tempo de termos uma biografia séria, que esfumasse uma vez por todas, este “denso nevoeiro” de ingratidão?