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01 DEZ 2017
Entre a tijelada e a morna
Por Jornal Abarca

Existe algum modo de ligar a falecida diva das mornas e das coladeras, Cesária Évora, a Abrantes? Esta questão, que parece saída de roda da sorte, afinal tem uma resposta menos imprevisível e mais precisa: sim, existe um elo que faz a ligação entre aquela que foi uma das maiores artistas de música popular a nível internacional e a cidade de Abrantes. E esse elo é o senhor sargento Oliveira, um militar de carreira, precocemente falecido, que fez vida em Abrantes nos anos 50 e 60 (e cuja família ainda hoje tem muitos dos seus elementos residentes em Abrantes).

Esta história é uma daquelas histórias que parece nunca ter existido, de tão inverosímil e, à distância no tempo, improvável. Conta-se em poucas palavras: embora tudo o que esteja por detrás dela seja de uma elevada profundidade e a justificar estudos mais profundos, quer no plano académico, que no domínio das interacções sociais, locais e até, hoje, internacionais.

O senhor sargento Oliveira era um militar do Exército português que, algures pelos finais dos anos cinquenta, início dos anos sessenta foi mobilizado para Cabo Verde. Colocado no Mindelo, na ilha de São Vicente e quem sabe fazendo uso da sua costela de espinhense (donde o nome mais familiar como era conhecido, fazendo jus à tradição militar de identificar os militares muitas vezes sem função da sua terra de origem: o senhor “sargento Espinho” e, vá lá, pondo em prática esse vocação dos portugueses para interagirem com os autóctones dos locais onde se encontram de forma superior, o senhor sargente Oliveira veio a tornar-se uma figura imensamente popular no Mindelo.

Para isso contribuíram duas das suas paixões: o futebol e a guitarra. No futebol o militar veio a treinar uma das mais populares equipas do Mindelo, onde a sua acção deixou marcas e amigos ao longo dos anos e sentidas homenagens, na hora da partida.

No entanto, a paixão que incendiava a alma do senhor sargento Oliveira era a viola. E foi a viola, que ele levou aos quatro cantos do mundo por onde andou como militar, que o conduziu a esse encontro que faz parte da história –sem dela fazer parte, por tão confinada e secreta, no sentido do desconhecido que é.

Imaginemos uma cidade do Mindelo, onde a música flui como o sangue no corpo humano, num fluxo contínuo, que é a essência da própria vida (no Mindelo tiveram origem os maiores músicos cabo-verdianos de todos os tempos: Bana, os Tubarões, Ildo Lobo, Tito Paris, etc). Imagine-se, à época, sem as solicitações e ocupações que existem hoje, o papel que a música e a socialização que ela permite, tinha em toda a vida social de uma cidade africana, pequena e sem muito que fazer.

Não é difícil imaginar o papel que tinha as tertúlias musicais. A sua importância a ocupação das pessoas e o prazer que elas retiravam desses encontros onde reinavam as mornas e as coladeras (os géneros musicais mais populares das ilhas).

E foi precisamente em várias dessas tertúlias musicais que o senhor sargento Oliveira se cruzou, acompanhando-a com a sua viola, a então desconhecida e muito jovem (de ar mesmo juvenil) Cesária Évora.

Anos mais tarde, com o senhor sargento Oliveira já falecido, a jovem Cesária, depois de um percurso nada fácil, faz um lançamento de uma carreira internacional a partir de Paris, tornando-se uma estrela da música popular internacional e a mais importante intérprete da música de Cabo Verde.

Existem registos desse tempo iniciático da diva cabo-verdiana, acompanhada pelo abrantino de coração que foi o senhor sargento Oliveira. Registos que, depois de trabalhados revelaram, do lado do militar português, uma personalidade de perfil humano muito acima do normal e um homem universalista, que a viola, em vez da arma (que mais facilmente associaríamos a militar de carreira) transformava num personagem de uma outra dimensão.

Em Abrantes vive ainda a viúva do senhor sargento Oliveira, a D. Fernanda e vários dos seus filhos. Todos eles orgulhosos do pai e sobretudo do seu percurso africano: que teve em Cabo Verde e na paixão que este ficou pela música das ilhas (compôs várias mornas e coladeras).

Este improvável encontro entre um militar português no activo e uma jovem cantadeira cabo-verdiana, que haveria de tornar-se um ícone da música africana, tem de ser contada noutros contextos e explorada nas suas vertentes histórica e social. É para isso que se deve remexer no passado: para o libertar do esquecimento e o tornar fonte de inspiração.

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