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01 NOV 2017
"ESPOSAS E MINHAS SENHORAS"
ENVOLTAS NUMA INOCENTE SOPA DE CAMARÃO
Por Jornal Abarca

Cascais, Outubro de 1997

Janto num restaurante na costa do Guincho com um colega finlandês (Jerker) que percebe razoavelmente o português e com quem faço equipa no World Bank/IFC num projeto de fábrica de sal gema perto de Rio Maior, algo inédito entre nós. Descansamos ambos a mente depois de um dia estafante de reuniões em Lisboa e viemos, por minha sugestão, alisar as brisas do Cabo da Roca, com uma sopa de camarão de entrada, que saudades tinha eu! O Jerker está maravilhado – o vinho branco é excelente, os pequenos rissóis e empadinhas do couvert impressionantes de leveza e sabor, o pãozinho saloio não tem nada de saloio, e  acha o ambiente humano, a freguesia digna de Biarritz. A freguesia? Bom, não vou arrefecer o ânimo do Jerker mas, ora, era a que se esperava - muitos Mercedes, Porsches e BMWs espraiados cá fora; 4 ou 5 soantes nomes de família e da banca; as agruras de viverem na Quinta da Marinha, os inevitáveis ministros e secretários de Estado (dois deles estiveram também nas reuniões e vieram salamecar à nossa mesa) enfim, todos no seu esplendor e glória pentajoanina, Deo in Caelo Tibi Autem in Terram, Amen, Amen .

Realmente vejo ali uma geração valente, brava, tenaz, digna de berço mais que esplêndido. Aguentam e carregam cifrões, divisas, câmbios, taxas de rendimento, de lucro líquido, de juros, swaps,boatos políticos, intrigas ultra palacianas e, pelos verões de cada ano, chegam ao ponto de heroicamente irem recarregar merecidamente as energias a recontar leopardos e hipopótamos no Quénia; a beber chá on the rocks no Taj Mahal; a mergulhar as carnes adiposas nas transparências das Maurícias (Cuba, República Dominicana e nordeste Brasileiro já estão fora de must-see, é claro), ir esquiar a Bariloche, sem esquecer o Tahiti. E para o ano, talvez dar uma de Indiana Jones no Cambodja, Burma, Samarcanda ou Nepal, até porque rima com Portugal, se outros motivos não houvera.

Mas voltemos ao que por aqui se passa.

Blasers e gravatas de seda, vestidos de meio chiffon, colares e anéis (ah, sobretudo aquele anel de brilhantes estrategicamente enfiado no dedo mindinho da mão direita, enquanto a faquinha de pão, espalha a manteiga na fatia de pão torrado e a pulseira de ouro chocalha levemente…). Enfim, o habitual - quem está ali a ver e ser visto; e depois dizer quem esteve ou não esteve.

Passa agora um casal todo pomposo, de meia idade, em direção a uma mesa; reservada, bien sûr. O casal cumprimenta à esquerda e à direita, a senhora com um ligeiro e gracioso inclinar de cabeça, mas o buço mal tosquiado dá-lhe um ligeiro ar de Duquesa de Caneças. Ele, mais liberal, folgazão, aperta meia dúzia de mãos, deixando a outra sobre o ombro do interlocutor, para que este não se levante, boa noite, deixem-se estar, ora em essa.

Mas há uma exceção – o casal dirige-se agora para uma mesa onde um cavalheiro mais grisalho, acompanhado de uma jovem esplendorosamente decotada, levanta-se bastante comprometido, cara a combinar com o da lagosta que lhe faz presença na travessa. Cumprimenta nervosamente o recém-chegado e aguenta o olhar gelado da acompanhante daquele, nem moita ou soita de saudação, haja terramotos. Num tom levemente irónico e sibilino, a folga bem disposta do recém-chegado pergunta ao aflito grisalho, enquanto olha de revés para a beldade, avaliando aquele belo e suculento naco de carne palpitante, que discretamente baixa os olhos:

- E como vai a sua esposa, minha senhora?

- A mi-mi-nha esposa? Vai-vai-vai bem, obrigado.

Coitado, o Jerker seguiu o diálogo mas nem patavina, não decifrou a sina, está confuso:

 - Ach, não perrrcebi Alex. A esposa daquele senhorr é “senhorra” do outrro?

Sorrio. Explico ser uma forma elegante de mencionar que o recém-chegado se sentia diplomática e socialmente como uma espécie de “criado” ou “servo” da tal esposa, ausente daquela mesapor razões que a discrição não permite indagar. Por isso, ela era “minha(dele) senhora”, uma domina romanadaquele, floreado gentilíssimo mas excruciantemente sacanóide (por favor desculpem a expressão mas sabe.me muito bem escrevê-la, quase tanto quanto uma fatia do Abade de Priscos, ai que saudade) naquele caso. O Jerker fica admirado com a fineza filigranada das gentes portuguesas e elogia.

- Como é admirável a herança seiscentista portuguesa…,

Abano a cabeça e sorrio cá do fundo. Soubesse o Jerker a subtileza envenenada deste “minha”senhora… mas não, era preciso ser português de mais do que 4  costados. Bom, postas as coisas assim, e nem pensar no tempo que iria demorar a desatar aquele nó górdio tão embaraçoso e adultérico opus 69, fecho a loja que ainda me arrefece a sopa.   

Bom proveito.

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