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20 DEZ 2017
Natal
Por Jornal Abarca

Relativamente à quadra natalícia tudo está dito, cantado, declamado, escrito e pregado de modo sublime por génios criativos, crentes e não crentes empolgados pelo profundo simbolismo do nascimento do Menino-Deus. Se quisermos fatigar os olhos contemplando, ouvindo, lendo, apalpando e apreciando criações dedicadas a enaltecerem o Suave Milagre queirosiano.

Os artistas e artesãos empenhavam-se tenazmente no sentido das suas obras mostrarem de modo minucioso signos e sinais referentes aos utensílios empregues na confecção e colocação dos comeres da Natividade, seja nos lares humildes, seja nos palácios dos nobilitados. Dispenso-me de tentar explicar as tábuas existentes na Misericórdia de Abrantes, não me dispenso de sugerir aos quadros existentes no Museu de Arte Antiga onde surgem instrumentos e utensílios de cozinha, e porque as crianças estão de férias levem-nas ao Museu de Coimbra, saciem os olhos e não se esqueçam de observar no quadro de S. Cosme S. Damião uma colher em forma de figo de forma a aquilatarem a influência que tem tido no decorrer dos séculos. A pintura no tocante às artes culinárias é preciosa fonte de ensinamentos. Não esqueçam!

No tocante a comeres e beberes nada está por escrever, está isso sim por provar e degustar na justa medida de ser impossível aferir as suculências concebidas um pouco por todo o lado, aqui, ali, acolá, nas diversas regiões do Globo pois nem mesmo o eremita recolhido na caverna de Platão, ou o super-homem engaiolado na sua suposta superioridade concebida por Nietzsche ficam imunes à memória da efeméride nem que seja para a negar, porém o estômago reclama junto do cérebro o cheiro mais que não seja das iguarias oriundas de tal matricialidade. Nem Karl Marx escapava!

Neste tempo de globalização as particularidades culinárias de povos e nações sofrem os atropelos do rolo compressor a impor os mesmos doces, o bolo-rei impôs o seu reinado, as mesmas carnes (veja-se o triunfo do jesuíta peru) a apagar os gansos, nas bebidas de regozijo os espumantes borbulhentos ganharam carta de alforria na generalidade dos lares.

Nas investigações que faço dou preferência à audição de representantes da cozinha oral do universo rural, pois salvo melhor opinião devidamente demonstrada é a que sofre mais riscos de desaparecimento não só pela introdução de produtos vindos de outras paragens, também derivado das alteridades linguísticas no jargão culinário, do emprego de artefactos e utensílios de arames, de folha -de-flandres, de vime, de algumas madeiras, (quem ainda usa colherotos?), sem esquecer a panóplia de ingredientes e condimentos. Um único exemplo já referido anteriormente – a malagueta oriunda da Guiné caiu na obscuridade ante a vitória do gindungo ou piripiri – a rasurarem as cozinhas tradicionais não escritas.

Não vale a pena clamar contra a uniformidade, vale a pena lembrar a missa do Galo no intuito de refrescar a memória de todos quantos não renunciam a honrarem com a sua presença e a seguir regozijarem o palato e a garganta voltando a abeirarem-se da mesa onde em várias localidades se põe comida destinada aos entes queridos desaparecidos. É, era, uma forma sentida e grave de honrar os parentes chegados de cada família.

É grandiosa a lista de escritores portugueses que nos legaram páginas e páginas sobre a Noite radiante ou maravilhosa, no entanto, alguns autores acrescentaram à noite do nascimento de Jesus dramas dos fugitivos às agruras da traição, aos vítimas de cobardes agressões a impedirem consoarem em família, a não chegarem a tempo, porque pereceram e semearam a dor e o luto, a deixarem no terreno da vil estocada o brinquedo pedido pelo filho pequenino. Leia-se O cavaquinho, conto de Aquilino Ribeiro.

Trautear loas às couves tronchudas, às nédias postas de bacalhau, aos ovos cozidos, às reboludas cebolas, ao finíssimo ímpia segundos os critérios conservadores nas mesas dos hotéis e restaurantes consagrados a satisfazer os apetites de clientes afastados da casa familiar, ou desavindos de colmeias humanas onde a vizinhança é uma quimera tal como é a certeza de paz duradoura em Belém a cidade berço do Natal.

Acreditar ou desacreditar eis a questão na esteira do grande Mestre do teatro isabelino. Pode-se perguntar a razão de trago a terreiro Shakespeare e não me lembro de Gil Vicente pai do teatro português? Mestre Gil nunca é esquecido. Só que o Bardo inglês escreveu Conto de Inverno que julgo apropriado para ser lido e meditado no decurso da quadra da máxima expressão da hipocrisia – abraços, beijos, sorrisos, juras –, o enredo do conto junta ciúme, perfídia, castigo, abandono, por fim redenção, apaziguamento, soluçado perdão e final feliz com consequente casamento dos apaixonados, ao contrário do funesto fim de Romeu e Julieta.

O notável e sagaz Mestre Gil deixou-nos na sua vasta obra inúmeras referências à Natividade. Sendo dramaturgo da corte não podia esquecer tão importante data, porque é menos nomeado atrevo-me a sugerir a leitura do Auto dos Reis Magos, onde exalta a fé naquela época de transição da Idade Média para o Renascimento, o Auto relata as vicissitudes de Gregório e Valério até chegarem a Belém no desejo de visitarem o Menino Jesus. Tudo acaba bem, eles, a escolta e os Reis Magos a entoarem cânticos junto ao Presépio. A autora da encomenda, a rainha Dona Leonor gostou da representação e o Mestre mereceu os aplausos e as moedas de pagamento do seu trabalho.

Acresce o facto de os dois criadores terem impregnado as suas obras de alusões a produtos e sua transformação em comida.

Boas Festas para todos quantos dedicam atenção ao que escrevo. Para os restantes também!

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