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01 ABR 2018
O TI ESCAROLA E A BARCA
Por Jornal Abarca

“A Barca”, este jornal que tem nas mãos ou está a ler on line, está de aniversário. São 28 anos. Está na idade adulta, à entrada da década em que tudo pode acontecer a quem lá chega. De que forma, nesta ocasião, cantar os “parabéns” ao jornal?

Para mim, o aniversário de “A Barca” é uma oportunidade de revisistar o Tramagal, onde vivi, no Sítio da Penha, onde joguei futebol juvenil, quando o TSU era grande a nível regional, aprendi histórias de vida com pessoas que trabalhavam na MDF ou percebi, talvez pela primeira vez, nos primeiro de Maio de portas abertas da “metalúrgica” que havia um problema no país (que eu, pela minha tenra idade, não sabia ainda descrever).

Nesta revisitação do Tramagal, escolhi escrever, de memória, sobre o que hoje me toca, com alguma profundidade, quando revejo “os meus tempos do Tramagal”.

Por todas as situações que vivi no Tramagal escolhi escrever sobre o Ti Escarola. Porque é que, mais de meio século (muito tempo) depois de aí ter vivido ainda me lembro deste homem baixo, de tez escura e corpo franzino marcado pelo tempo?

Vou correr um grande risco, porque, em boa verdade, não sei se era assim ou não, sendo que o que é seguro é que eu era um miúdo que ainda não tinha entrado na escola primária (o que só aconteceu em Abrantes). Eu acho, hoje, que o Ti Escarola, ao tempo a que me refiro, era “velho”. Por isso, é de uma pessoa, que acho que era idosa, que estou a escrever.

E é precisamento essa condição que quero destacar. O Ti Escarola era uma pessoa que eu hoje classifico de maravilhosa. Tinha paciência para nos aturar, ao miúdos que invadíamos o seu quintal, para escutar um corvo que, salvo erro dizia “Olá!” quando nos aproximávamos. Era uma festa, provocar o corvo: que não dizia mais do que esse monossílabo. Só que, em vez de se aborrecer com a nossa presença, o Ti Escarola e a esposa (cuja nome o tempo levou da minha memória) falavam connosco e aturavam-nos.

Vi-o, muitas vezes, porque mesmo depois de já viver em Abrantes, continuei a ir ao Tramagal e ia sempre visitar os antigos vizinhos do sítio da penha (ou ficava na casa dos pais do Mário Mendes, que também foi cronista neste jornal e conterrâneo de Santa Margarida) a reparar as suas redes de pescador. Sim o Ti Escarola era pescador.

E o que se percebia nele era essa sabedoria que só a experiência dá e cuja matriz é a tolerância. Há uma cultura baseada na tolerância que hoje está em vias de desaparecer e que tanto pode ser o resultado do desaparecimento do autodidatismo, como da transmissão de saberes e competências feita sobretudo pela via oral.

Eu hoje lembro-me do Ti Escarola como um velho (seria?) sábio e tolerante. Que ensinava o que sabia e cuidava do seu corvo com esmero (apesar do o ter preso –o que não seria nos nossos dias, nem legal, nem, como se diz, politicamente correcto).

Nós, os miúdos respeitávamos a presença do Ti Escarola, quando provocávamos o corvo e este, de forma tolerante nos repreendia. No Tramagal, desses anos sessenta ainda havia profissões assim, não só operários ou proprietários. Por isso o Tramagal era uma sociedade diversa e viva: onde não havia separações fúteis, como existem hoje em dia. No Tramagal, como em Abrantes, os putos frequentavam todos a mesma escola primária (e mesmo se depois, na adolescência, uma parte não estudou, outra foi para a Escola e outra para os Colégios) continuava tudo mais ou menos misturado e mais ou menos confundido nas origens.

O Ti Escarola é um lídimo representante de um mundo que desapareceu. E que a espaços parece regressar, mas não sem a força suficiente para se impor. Esse mundo era o mundo em que as gerações se cruzavam e transmitiam saber e valores de forma consistente, como uma “arma social” para enfrentar o futuro.

É esta a razão principal porque é que eu me recordo do Ti Escarola passado mais de meio século depois de me ter cruzado com ele nesse pequeno sítio da penha Porque dele recordo essa bondade, a sabedoria, a tolerância, a capacidade de “aturar” as gerações mais novas. Enfim, valores que me ajudaram a forjar o futuro.

Obrigado a “A Barca” por, através do seu aniversário, me ter permitido recordar uma pessoa tão generosa e uma Terra onde gostei de viver e ainda hoje tenho bons amigos.

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