Home »
01 SET 2018
Os VELHOS: QUANDO O VERÃO ERA...
Por Jornal Abarca

Quando o Verão era Verão eu costumava passar uma parte significativa desse tempo em Santa Margarida da Coutada. A aldeia era muito diferente do que é hoje. Tinha vida. Pessoas. Actividade.

Esses tempos são a memória que tenho do que é viver no campo. Aquelas coisas que normalmente “só se vêem nos filmes” ainda tive oportunidade de as vivenciar em Santa Margarida: as desfolhadas, as vindimas, o pisar das uvas, a descasca do milho, a debulha das favas, tirar a água da nora, com a burra, etc.

Os verões em Santa Margarida continuam a ser para mim uma coisa memorável. Apesar da sesta obrigatória, a meio da tarde!…

Éramos uns tantos miúdos: o Pacheco, o Pinto, o Abreu, o Cipriano, o Jorge, e algumas miúdas: a Manuela, a Margarida, a Lúcia. Uns, poucos, anos mais velhos, já mais experientes e mais distantes: os rapazes, o Gito, o Risota, o Celestino, o Sérgio, o Raúl ou as raparigas: a Carolina, a Natália e a Maria Natália, a Manuela, a Cidalina, a Maria Natércia, a Soledade.

Do que eu quero falar nesta crónica, no entanto, é dessa outra face da Aldeia. A aldeia dos velhos. Quando nós, os miúdos e as miúdas, porque os da meia-idade estavam a trabalhar, passávamos o nosso tempo com eles. Extremos geracionais a tocarem-se!

Em Santa Margarida da Coutada, onde eu passava parte do meu Verão, em casa dos meus padrinhos de baptismo, a Ti Florinda Freire (uma personalidade absolutamente extraordinária) e o ti António Rodrigues (taberneiro, alfaiate, merceeiro: sempre de bem com a vida) aprendi a respeitar os “velhos” e a perceber o quanto são importantes no desenvolvimento dos mais novos.

Quando falo de “velhos” estou a falar da terceira geração à frente. Dos que ao tempo teriam mais de sessenta anos. Contas fáceis de fazer: havia a minha geração a dos miúdos; a dos filhos dos meus padrinhos, o Manel e o António Maria, a dos meus padrinhos e a dos seus pais.

É desta última que eu falo aqui: da geração do Ti Zé Freire e da Ti Florinda Freire, pais da minha madrinha. E da Ti Augusta e do Ti Isidro Ceilão, os pais do meu padrinho.

Nós os miúdos era com estes (e outros) velhos que passávamos a maior parte do tempo.

A Ti Augusta: são poucas as pessoas que eu recordo como ela: tolerância, bondade, equilíbrio, sabedoria. Uma senhora que sabia como actuar em cada situação. E tinha toda a argúcia para me receber quando eu me refugiava na sua casa para fugir aos excessos de rigor da minha madrinha.

A casa da Ti Augusta, uma antiga casa de lavradores, com adega, dependências agrícolas, estábulo para o burro e muito mais,… Era o lugar mais próximo do paraíso nesses dias tórridos de Verão.

E se falo aqui da Ti Augusta, é bom que se diga que todos os velhos da aldeia eram pessoas de uma grande generosidade. Nunca mais encontrei um grupo de pessoas assim: que transmitiam o seu saber e a sua generosidade às gerações mais jovens.

De todos eles, queria destacar aqui o mais fechado de todos eles: o Ti Isidro Ceilão, homem vivido, dado aos negócios, quase retirado dessas lides quando privei mais de perto com ele (no início dos anos sessenta). O Ti Isidro era o oposto da mulher, a Ti Augusta.

Se nela existia bondade, ele era a dureza em pessoa. Se ela era afável, ele era sisudo. Se ela era doce no trato, ele era rude nas palavras.

No entanto, um ano, quando me despedia, no final do Verão para voltar a Abrantes e fui ter com ele e lhe disse: “-Ó Ti Isidro, venho-me despedir,… Vou-me embora daqui a bocado para casa na camioneta da carreira!...”, o Ti Isidro balbuciou qualquer coisa que eu não entendi e eu percebi-lhe umas lágrimas fugazes no rosto marcado pela vida.

É uma imagem que me acompanha desde aí: nunca percebi, porque razão o Ti Isidro Ceilão, que estava sempre a recriminar por isto e aquilo, a mim e aos outros miúdos, no final daquele Verão dera um pequeno sinal de humanidade e benevolência?

Soube-o três meses depois, quando voltei para passar uns dias pelas férias do Natal. O Ti Isidro Ceilão tinha falecido entretanto. Ainda hoje estou convencido que ao despedir-se de mim, naquele final do Verão ele sabia que era a última vez que o fazia: e a sua atitude para comigo, foi uma forma de demonstrar o quanto gostava de mim (sem que alguma vez disso me tenha dado qualquer sinal).

Sem o Ti Isidro, os verões na aldeia passaram a ser diferentes. Parecia tudo muito mais fácil. Mas quando eu entrava na casa da Ti Augusta, sentia que faltava ali a figura austera do Ti Isidro.

Hoje, sinto que tenho uma gratidão sem limites para os verões passados na Aldeia de Santa Margarida da Coutada.

(0) Comentários
Escrever um Comentário
Nome (*)

Email (*) (não será divulgado)

Website

Comentário

Verificação
Autorizo que este comentário seja publicado



Comentários

PUB
crónicas remando
PUB
CONSULTAS ONLINE
Interessa-se pela política local?
 73%     Sim
 27%     Não
( 367 respostas )
© 2011 Jornal Abarca , todos os direitos reservados | Mapa do site | Quem Somos | Estatuto Editorial | Editora | Ficha Técnica | Desenvolvimento e Design