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13 JUN 2021
OPINIÃO | "Os Últimos", por Anabela Ferreira
Por Jornal Abarca

Há dias em que parece que suportamos todo o peso do mundo nos ombros ou, como as Cariátides, à cabeça.

Nestes dias, lembro-me das palavras de um colega de outra vida que tinha viajado no verão anterior até à Índia e que ficou tomado pelo espanto de ver, com fome e chagas, tanto horror, sofrimento e miséria humana. Uma coisa é conhecer em teoria, outra, bem diferente, é sentir in loco, olhar os olhos, ver os rostos de fome e dor. Sair do hotel e ser abordado por um bando de crianças, olhares vazios, caras de fome, mendigando o alimento da sobrevivência. Não querendo diminuir os nossos problemas, eles são, em geral, na nossa conceção atávica de vida, mesquinhos e de gente fútil. Baseamos a nossa felicidade nos bens, nos objetos que possuímos e no aspeto exterior. Há quem lute por um pouco de água potável, por um naco de pão.

O Benfica fez uma goleada, diz a rádio companheira, fiquei contente. Apesar de não ser sócia nem tampouco adepta fervorosa, o meu avô materno ensinou-me que, se eu gostava do vermelho, era porque, tal como ele, era benfiquista e benfiquista fiquei naquele momento, mediante tal verdade absoluta. Talvez ainda nem tudo estivesse perdido e pelo menos o honroso segundo lugar fosse possível. Que isto de ganharmos sempre também não é responsável (sorrio para mim).

Depois, no meu caminho diário para o labor que traz a satisfação e que, como qualquer cidadão honesto, tenho de realizar para obter “o pão nosso de cada dia”, já que não tenho amigos que me oferecem fortunas como uns e outros da nossa praça, passo pelo Entroncamento, cidade dos fenómenos e dos comboios e que dos seus caminhos tirou o seu nome. Passo por uma ponte e por uma passagem de nível, esta entre muitas, que prova, se dúvidas houvesse, a vergonha da cegueira da justiça nacional que privilegia os lobbies e os poderosos. É, de facto, uma vergonha continuarem a existir estas passagens, apenas porque a empresa não quer gastar dinheiro nas obras necessárias. Quanto custa uma vida?

Cancela fechada. Passagem interrompida. Mais um detalhe neste dia falido que ainda agora começou. Apercebi-me, como era a última da fila de trânsito e permanecia ainda no ponto alto da ponte, que estava já a passar lá em baixo o comboio impeditivo e que seguramente não levaria muitos minutos a abrir-se aquela passagem, para que cada um pudesse prossegui o seu caminho e continuar com a sua vida, momentaneamente adiada. Outros automobilistas houve, situados numa posição aparentemente mais vantajosa, que rapidamente inverteram a marcha para sair daquele impasse e perda de tempo, que estando mais à frente não poderiam ter a minha perspetiva e informação, indo tentar um caminho alternativo mais longo, mas sem impedimentos. Ora, o que retirei daqui foi que, por vezes, parece que o universo conjura contra nós, tudo corre mal, mas o que parecia mais uma desvantagem se concretizou numa vantagem. Mais uma vez, isto sabe-se na teoria, mas quando nos ocorre na prática, entende-se e sente-se melhor.

Às vezes animo alguns encarregados de educação cujo educando obtém resultados pouco satisfatórios: “Sim, realmente, podiam ser melhores os resultados, mas o seu filho tem algo que nem todos têm, é educado, respeitador e, mais importante, boa pessoa. Com educação chega-se longe.” Pois, sem fazer a apologia do insucesso e muito menos da preguiça, ocorre por vezes que o que se pensava que ficaria pelo caminho acaba por ir mais longe. No essencial, o que importa é ser feliz, seja pelo caminho A ou pelo B. Com honestidade e sem prejudicar o outro.

Chego à escola. “Bom dia, Storinha!” – cumprimentam em bando de andorinhas primaveris, sorriem com os olhos, retribuo com o sorriso mascarado e, sem conseguir deixar de pensar que a palavra não está correta, respondo o habitual “Bom dia, meus meninos!”.

O dia, afinal, só pode melhorar.

Os últimos muitas vezes podem ser os primeiros.

Olho o céu e maravilho-me. Afinal, quantas vezes observamos um arco-íris duplo?

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