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19 JUL 2021
OPINIÃO | "E agora, José?", por Adelino Pires
Por Jornal Abarca

Olho as seiscentas páginas com vontade de ter uns anos a menos e alguma memória a mais. Sempre me ajudaria a escrever um texto que se pretende curto e que fosse a ponta de uma meada por onde pegar. Li que o Bruno Vieira Amaral levou três anos para o escrever*. Pudera! Três anos para seguir as pisadas de alguém para quem a infância tinha o cheiro vindo das hortas e ruas onde se aliviavam as bestas.

Filho de pai militar e mãe beata de duplo apelido, nascido a vinte metros da igreja da terra que nem por isso o contagiou, José Cardoso Pires nasceu em 1925, nos finais de uma 1ª República atribulada, que daria o último suspiro alguns meses mais tarde. Depois, um outro regime, onde tudo seria diferente. Dali, de São João do Peso, perto daqui afinal, cedo se foi até uma Lisboa onde despontavam os táxis, guarda sinaleiros, engraxadores, gente pronta a uma vida melhor. Ali, em Arroios, frente ao chafariz de abastecer o gado e também as gentes, que por aqueles tempos ainda era assim, por ali ficou e por ali cresceu. Assim se conta nas primeiras páginas do livro que folheio e ao qual voltarei com a atenção que merece.

Percebo, pela bibliografia, notas (mais de quatrocentas) e índices, que é trabalho de grande folego, longe de caber apenas numa crónica de jornal. Irão dar que falar. O livro, o biógrafo e o biografado que aos dez anos chega ao Liceu Camões, envergonhado, com a Maria a seguir-lhe os passos. Maria, a rapariga que veio lá da terra para servir em casa e tomar conta dele, era assim como que uma primeira escolta. Uma alfinetada pequeno-burguesa na vida de um pequeno rufia. A vida também é feita de pequenos nadas.

Aos poucos, José ia crescendo longe daquilo, “...de uma “terra de pês” que só deu padres e pedras, pinheiros e polícias”, mergulhado no espírito da cidade que com ele crescia. Foi sempre seco para com “...aquela gente de mentalidade provinciana”, onde, dizia, “...se transpirava subserviência”. Ou quase sempre. Distante, duro, roçando o ingrato, não se revendo na família da mãe. Dos primeiros colegas do Camões, Luiz Pacheco, o poeta maldito, irá acompanhá-lo pela vida fora, desde os primeiros escritos, nem sempre do mesmo lado. As histórias sucedem-se. Ainda novo, pelos vinte anos talvez, decide viver sozinho numa pensão algures por ali. Como se pudesse estar sozinho num lugar daqueles, com tentações daquelas, em meados de quarenta de uma década tramada. Resolve rebentar a bolha pequeno-burguesa onde fora criado. Desfaz o espartilho que o destino traçara. Desafia o futuro. E segue. Conhece meio mundo naquela Lisboa boémia de literatos e outros. Nas tertúlias, nos cafés, nos grupos, grupinhos e grupelhos. Do Herminius, da Joaninha, do Chiado. Vai conhecendo meio mundo. E o outro meio virá a conhecê-lo.

Está inquieto. Tenta sobreviver, não cedendo. Quer escrever. Bate a portas recorrendo aqui e ali. Os primeiros escritos na Afinidades e no Globo são apenas frestas de portas que parecem fechadas. Faz crítica literária, traduções, tudo o que pode e o deixam fazer para quem ainda nem sequer tem um livro publicado. Isso era para outros, de nome já feito, os Ferreira de Castro, Aquilino, até o Redol a quem, num ataque de fúria acusa de escrever a literatura mais detestável que então se publica. Mais tarde, arrepende-se de o ter dito. Mas era assim o seu espírito rebelde. Sempre assim foi. Mesmo quando decidiu ser praticante de piloto sem curso e partiu no “Sofala” com destino a Timor ainda na posse dos japoneses. A Guerra, a segunda, tinha acabado na Europa, mas não no fim do mundo. Foi um choque. A viagem, a vida no navio e, principalmente, tudo a que assistiu nas escalas em África. Fugiu e regressou sem terminar a viagem. 

Com o final da Guerra, em 45, um agitar da política. Pensou-se que seria desta que o regime se ficava. Sopram os ventos. O MUD e o MUD Juvenil com Soares, Júlio Pomar, Cesariny ou O’Neill. O Coro Amizade da Academia dos Amadores de Música, com Lopes-Graça. O Conselho das Mulheres Portuguesas, com Maria Lamas. E também o PCP, que o atrai. Adere. É tanto, são tantos. O regime endurece. Em 47 aumenta a repressão aos grevistas da cintura industrial de Lisboa. São presos dezenas de militantes do Partido e quase toda a sua cúpula. É ilegalizado o MUD. São demitidos compulsivamente mais de vinte professores universitários. A coisa está preta.

Cardoso Pires, perde o pai em Agosto de 47. O pai que amava, mas de quem nunca percebeu o porquê daquela “... submissão excessiva à austeridade de fundo religioso da mãe...”. E sabia que a sua rebeldia o havia feito sofrer. Agora, partiam os dois. O pai, em paz, sabe-se lá para onde. Ele, preparado para uma guerra que não era a dele. Em Vendas Novas seria militar, mas com a cabeça no livro de contos que queria publicar assim que pudesse. Não lhe falassem de espingardas. Cumpre os serviços mínimos de exigência máxima. E sai. O rufia volta aos empregos de subsistência até conseguir contar um conto. Sabe que um dia irá consegui-lo. Fala com os neorrealistas de quem tanto se aproxima como se afasta. Faz traduções da colecção Vampiro onde o seu nome nem sequer é mencionado. Numa época afrancesada, valia-lhe o inglês que aprendera com uma inglesa que conhecera na praia. São os pormenores que fazem a diferença, porque a vida também é feita de pequenos nadas.

Fala com Mário Dionísio para lhe abençoar os contos. E com eles debaixo do braço e alguns trocos da herança do pai, consegue o milagre. Armindo Rodrigues, médico e poeta, sugere-lhe o óbvio. Porque não ele próprio, Cardoso Pires, a pagar o seu livro, com o apoio de alguns amigos. Entre eles Júlio Pomar, que ilustrou a capa e Pépito, antigo colega do Liceu Camões, que empenhou um sobretudo para o apoiar. E assim foi. Em 49, “Caminheiros e outros contos”, que poderia bem ser “Caminheiros e outros sonhos” foi finalmente publicado pelo Centro Bibliográfico, numa edição de autor. A crítica tremeu, mas rendeu-se, “... neorrealismo depurado de todos os seus vícios fundamentais”, escrevia Gaspar Simões, o temeroso crítico de então.  O rufia, o rebelde, fosse lá o que fosse, furava o espartilho, para não mais parar.

Depois, depois foi uma vida cheia que não cabe em meia dúzia de linhas na página de um jornal. Depois, foi o que se vai sabendo e muito do que ficou por dizer. A Gleba, o Almanaque, a Ulisseia ou a EVA. A Arcádia ou a Moraes. E os desabafos com Maria Lamas, de quem se tornou confidente “... Não sei por quanto tempo aguentarei este estado de vida miserável. Não sei até quando viverei exclusivamente das letras mal escritas que campeiam por aqui, por toda a parte, na EVA e na editora onde estou. Nem por quanto tempo fico à espera nem eu sei do quê...”*.

E depois foram todos os livros. E os amigos. E os outros. O Hóspede de Job, as viagens, o Delfim, os prémios ganhos e os devidos, a vida meio cheia, meio vazia ou talvez a transbordar. Os sorrisos e as desilusões. Como quando, após Abril, soube que Pépito, esse mesmo, o seu velho amigo do Camões, o tal que o ajudara a pagar o livro e de quem fora padrinho de casamento, também fora informador da PIDE e o vigiara de perto durante alguns anos. Uma vida desconcertante e um final, In profundis, valsa lenta. Como este livro, afinal. Habituámo-nos ao homem tal como o conhecíamos. Este é um mergulho em águas bem mais profundas. Respiro fundo. E agora, José?

  • (“Integrado Marginal”, Biografia de José Cardoso Pires, de Bruno Vieira Amaral)

Nota: texto publicado no jornal O Almonda em 25.6.21

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