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16 MAR 2022
OPINIÃO | "Schwarzenegger avança pelo corredor...", por Maria João Carvalho
Por Jornal Abarca

Chegava ao fim o dia de Urgência e ia ser rendida por um colega que não conhecia, mas de quem enalteciam a competência, profissionalismo, difícil convivência com colegas e enfermagem, picuinhas, metódico, não sorria, rosto fechado, duro.

A dois minutos das 21 horas eis que Schwarzenegger marcha, marcial, pelo corredor que divide o Serviço ao meio e vem terminar na bolha envidraçada em que o espero. Ficamos frente a frente. Cabeça rapada, Richard Gere no corpo de Schwarzenegger. Ou Henry Fonda em Jezebel? Frente a frente. O espanto no rosto de Gere, Fonda, blusão e calças de cabedal preto como os motards dos filmes americanos. O espanto. O sorriso do homem que não sorria, sorriso bom. "Dra. Maria João??!!!!”

O meu espanto. E Schwarzenegger sorri como Gere e diz: "sou o Rui"

Caídos no abraço, regressamos a trinta anos atrás, quando ele era meu aluno e um rapaz modesto com óculos.

Uma tarde, realizava-se o exame final escrito no anfiteatro grande, os assistentes passeavam pelas filas. Reparei que um aluno copiava. Chamei-lhe a atenção discretamente, mas ele, protegido de uma colega que me deixara de falar ainda estou para saber porquê, desatou aos gritos "dou-lhe um tiro". Levantaram-se os meus alunos, o Rui, enfermeiro militar e o único aluno que entrara em Medicina através dos exames Ad-hoc nos muitos anos em que integrei tal júri, tomou a frente da revolta. Gerou-se burburinho. A colega veio em socorro do seu protegido. Eu expulsei-o. Ela até chorava.

Nessa noite, o Rui atravessava um pátio no Hospital Militar onde trabalhava e foi agredido brutalmente por um grupo que até fez questão de lhe esmigalhar os óculos.

Schwarzenegger na minha frente. Nem acreditava.

Sem óculos, sem modéstia, forte e fero. A vida tinha-o mudado, moldara-o.

Mas o sorriso lá estava. Como há trinta anos. Doce, amigável, protector.

A amizade não se explica, mas quando é sincera, é imortal.

 

 

Soneto do amigo

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica…

Vinicius de Moraes (1913 - 1980)

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