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01 JUN 2017
Viral
Por Jornal Abarca

Conheci em Moçambique um companheiro de trabalho que me encantou pelo modo como sabia viver. A forma quase leviana como encarava a vida não lhe reduzia a capacidade para analisar conscientemente as questões. Cerqueiro, para os amigos, um dia disse-me “sempre que me falam para ver algo que ficou viral, desconfio logo. A probabilidade de ser algo estúpido é cada vez mais elevada”.

Aquilo ficou-me na cabeça e de lá nunca mais saiu. E ficou-me no pensamento por um motivo: ele tinha razão.

A última novidade que ficou viral entre os jovens um pouco por todo o mundo foi a estranha moda da “baleia azul”. Recuso-me a nomear como um jogo. Não sei em que mundo vivemos, mas naquele em que eu teimo em viver aquilo não é um jogo. Para muitos que lêem este texto será brincar de pião na mão, para outros jogar à bola com os amigos na rua até ser escuro demais para ver o que seja, mas isto não é um jogo.

Basicamente, a “baleia azul” consiste em fazer um conjunto de provas de risco, ordenadas por um desconhecido, que culminam sempre em suicídio. Quando para ganhar a pessoa tem de suicidar, perde sempre.

É este o estranho mundo em que os nossos jovens vivem. Outrora crianças abandonadas nos tempos livres ao destino da última moda tecnológica, dependentes da aprovação de estranhos para se sentirem felizes, em que um gosto numa rede social aumenta mais a auto-estima que um carinho do pai ou da mãe. Porque raramente existe. E as “baleias azuis” deste mundo predador estão sempre ao virar da esquina.

A minha desconfiança com as novas modas, que para muitos é irracional, aumenta exponencialmente a cada “baleia” que aparece. Chamem-me antiquado.

O Salvador Sobral apareceu como uma dessas modas virais. Um poema bonito, uma melodia diferente do que o Festival da Canção nos habituou e, de repente, o Salvador aparecia como Dom Sebastião neste país que vive sempre com um salvador na mente, Sobral ou outro.

Ouvi e gostei. Mas, confesso, não foi a música que me conquistou. O coração do Salvador, que dizem fraco de saúde, é gigante: primeiro a forma despolitizada como levou para uma festa de comemoração da Europa o drama dos refugiados, o grande flagelo que actualmente atravessa o mundo; depois o modo como dá uma estalada de luva branca no próprio conceito em que o Festival da Eurovisão se tornou no discurso de vitória: “música não é fogo-de-artifício, é sentimento”; por último, já depois da vitória, vi uma interpretação sua do lindo poema Presságio, de Fernando Pessoa, e aí sim tive que me render.

Não sei em que mundo vivemos mas eu quero viver num mundo em que há gente como o Salvador: com arte no corpo, com sentimento em cada movimento e um coração do tamanho da plateia. Como escreveu o mesmo Fernando Pessoa nas suas teorias epicuristas: “Para ser grande, sê inteiro (…) Põe quanto és no mínimo que fazes”. Que isso, sim, se torne viral.

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