Era pintor. Todos os anos ia aquela exposição variada, ou não fosse o local uma escola de Arte onde se mostrava tudo: pintura, escultura, colagem. Morava longe de Lisboa, foi de combóio, e por isso chegou cedo e a casa estava vazia. Sentou-se num banco a ler o livro que sempre levava para entreter as horas de espera. Estava frio, chovia miudinho.
A pouco e pouco veio chegando gente. Andaram por ali... Até que alguém descobriu uma peça encostada ao rodapé da sala onde ele estava. Uma pessoa chegou-se curiosa do que atraia a atenção da outra. E vieram outras e outras... Ficaram a olhar embevecidas a obra de arte e imaginação que ali se mostrava. Ele achou que lhe tinha passado desapercebida tal maravilha e intimamente não se perdoou. Estava cansado. Apanhar o combóio àquela hora, a viagem, o autocarro até ali... se calhar até estava a ficar velho... Deixou juntar mais gente, ele até era bem conhecido e se descobrissem que não dera pela obra singular seria um desonra, enfim um desprimor... Que coisa esquisita.
Ia-se juntando povo. Alguns saudavam-no... Pior...
Um veio mesmo perguntar-lhe o que pensava, acrescentando para seu descanso momentâneo que a juventude estava sempre a inovar. Respondeu-lhe que era por isso que ali ia todos os anos, mas sem alma. Que vergonha!
Entretanto, chegou a hora da abertura da exposição. Um grupo de senhores bem vestidos ficaram a conversar na entrada. Falavam alto, riam...
E inusitadamente apareceu uma senhora gorda com uma esfregona na mão e uma multidão de ganchos nos cabelos oleosos, muito corada e atrapalhada. Pediu licenças, licenças para conseguir atravessar a multidão e... apanhou o papel amarfanhado junto ao rodapé... que lhe valera uma descompostura valente.
O pintor deu uma gargalhada.
Nunca mais foi a essa exposição.
SONETO DO AMIGO
Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.
É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.
Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.
O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...
Vinicius de Moraes 1913-1980