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13 ABR 2020
Dra. Emília Valadas: "Está nas mãos de todos nós, não adianta esperar milagres"
Por Jornal Abarca
Foto: justnews.pt
Foto: justnews.pt

Emília Valadas é infecciologista no Hospital de Santa Maria há três décadas e Professora de Doenças Infecciosas na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa há vinte anos. Avalia a natureza do vírus e a forma como Portugal está a lidar com a Covid-19 numa entrevista realizada por Skype.

Como é que actua este vírus no corpo humano?
Sabe-se muito pouco ainda, tudo isto tem menos de três meses, tem sido tudo muito rápido. Mas sabe-se que o vírus entra no nosso sistema respiratório e há alguns indícios de que possa também entrar no sistema digestivo. No sistema respiratório actua como qualquer pneumonia viral. Há sintomas que evoluem muito rapidamente e levam algumas pessoas aos Cuidados Intensivos e esse é de facto o grande problema porque muitas vezes são grupos de doentes com outras patologias associadas.

Os denominados grupos de risco estão relacionados com pessoas que têm o sistema imunitário mais fragilizado?
Os dados mais sérios que nós conhecemos são da China e o que nós sabemos é que num grupo estudado de cerca de 50 mil pessoas a maioria que tinha doença grave eram idosos. Ou tinham diabetes, ou hipertensão ou doença pulmonar importante que pode ser bronquite ou asma. Naquela população havia muita gente com hábitos tabágicos muito intensos e onde há muita poluição. Há medida que fomos tendo relatos de casos fora da China percebemos que havia mais dois grupos: pessoas com hipertensão pulmonar, sem mais nada, e os obesos que nos EUA parece ser um problema importante. Mas ainda não se sabe ainda exactamente porquê.

As grávidas fazem perto desse grupo de risco?
As grávidas são sempre um grupo de risco mas não há provas reais de que haja transmissão do vírus da mãe para o feto. Mas, claro, uma grávida terá de ter cuidados redobrados porque sobre esta pandemia só sabemos o princípio e não sabemos o fim.

Que sequelas pode esta doença deixar para as pessoas que recuperam?
O pior resultado é a mortalidade elevada nos cuidados intensivos, que supera com certeza os habituais 15% a 20%, nalguns artigos refere-se uma taxa perto dos 50%. Mas ainda não se sabe muito bem que sequelas podem ficar.

O principal problema será a afluência de pessoas a que o SNS pode não conseguir dar resposta ou a letalidade da doença?
São as duas coisas. Esta é uma infecção que avança muito rapidamente e se nós tivermos muitas pessoas doentes numa semana, 80% dessas pessoas não vão precisar de grande assistência. Mas temos 20% que vão precisar de cuidados médicos. E desses, 5% vão precisar de Cuidados Intensivos. E não há Cuidados Intensivos para toda a gente, mas esse é um problema aqui e em todo o mundo.

O SNS não está preparado em termos humanos e materiais para lidar com esta situação?
Ninguém está! É impossível estar. Ninguém tem um sistema de saúde preparado para receber um acréscimo enorme de doentes graves. O país na Europa que talvez esteja mais bem preparado para essa situação é a Alemanha, porque tem mais camas para receber doentes e porque está mais descentralizado do que Portugal. E por outro lado porque a disciplina do povo alemão é maior do que a nossa, se dizem para não visitar os avós dois meses, não visitam.

Sente que os portugueses ainda não entenderam a importância de ficar em casa?
Tenho de dizer que estou positivamente surpreendida com o comportamento dos portugueses, pelo menos aqui em Lisboa. Nota-se em relação ao trânsito, nos cumprimentos durante o dia, nota-se que há um certo cuidado que eu não esperava que fosse tão pacífico e tão rápido. Claro que há pessoas que continuam a fazer as coisas normais como se nada acontecesse. Temos aquele hábito de que as regras são para quebrar, mas tenho tido uma agradável surpresa.

Na Urgência as coisas estão a decorrer de forma ordeira?
No Hospital de Santa Maria, que é um grande hospital, a afluência de pessoas à Urgência tem sido muito menor. As pessoas perceberam a gravidade da situação mas também que é perigoso ir à Urgência porque é onde se concentra o maior número de pessoas com uma possível infecção.

Podemos concluir que o que aconteceu em Espanha e Itália alarmou os portugueses?
Talvez essa tenha sido a parte positiva desta situação, e eu tenho alguma esperança de que os nossos números não sejam nem de perto nem de longe iguais aos de Itália ou Espanha.

Neste momento como está organizado o processo de tratamento de doentes?
O tratamento é feito com base em alguns fármacos utilizados para outras situações, nomeadamente a malária ou a infecção por HIV. Sabemos muito pouco como disse, por isso testamos fármacos já usados noutros tratamentos porque temos confiança neles. A Organização Mundial de Saúde começou um estudo enorme em que vão perceber o resultado da combinação de quatro fármacos, para que daqui a pouco tempo se consiga entender qual a combinação mais eficaz e com menos efeitos secundários.

É possível haver uma vacina ainda em 2020 ou isso é algo utópico?
É algo utópico. Não basta só ter a vacina sabendo que podemos estar a fazer mal às pessoas. Há uma fase de segurança e isso demora algum tempo. Mas em comparação com o HIV estamos a conseguir resultados muito mais rapidamente. No HIV só dois anos depois de vermos que havia uma doença é que descobrimos o vírus que a provocava, aqui foram sete dias. No caso do HIV começámos a ter tratamento vinte anos depois enquanto aqui já temos algumas coisas, mesmo não sendo 100% eficazes, mas que dão uma ajuda e esperança para que ainda durante este ano haja um tratamento eficaz para os casos graves. Está tudo a acontecer muito rápido, há três meses nem sabíamos que isto estava a acontecer.

Ficar em casa pode deixar-nos muito mais perto de resolver o problema?
É obrigatório! Do ponto de vista do bom senso é a única coisa que temos de fazer. Como li num artigo temos de dar uma “martelada” na curva para diminuir o número de doentes graves que chegam ao hospital.

Mesmo assim torna-se incomportável prolongar durante muito tempo esta situação. Será inevitável um novo surto em 2020?
No inverno… se as coisas agora se resolverem mais ou menos bem, com diminuição de casos no verão, é provável que na altura da nossa gripe sazonal haja um ligeiro aumento dos casos, mas não tanto como agora, esperemos. Um pouco como a gripe sazonal que convivemos com ela todos os anos, o coronavírus poderá comportar-se do mesmo modo no inverno.

Há quem acuse Portugal de realizar poucos testes (1600/1700 por dia). Acha que essa é uma crítica justa?
É óbvio que do ponto de vista teórico devíamos testar toda a população neste momento. Mas isso é impossível. Ninguém esperava por este tsunami. É como as máscaras, ninguém tem máscaras para a população inteira. Acho que sim, devia-se testar o máximo de pessoas, mas é uma crítica injusta porque temos estado a fazer muito bem dentro do que conseguimos. O melhor que podemos fazer é mesmo ficar em casa. Claro, devíamos ter mais máscaras e mais testes, mas convém não nos esquecermos de que Portugal é um país pobre, embora tenhamos a ilusão de que não, portanto não nos podemos comparar com sistemas mais ricos na Europa. Se calhar o pouco investimento que foi feito no SNS nos últimos dez ou quinze anos, chegou a altura de pensarmos se fizemos bem ou não… agora estamos obviamente a pagar esse preço.

A Directora-Geral da Saúde e a Ministra da Saúde apontaram o pico da crise para 14 de Abril e depois houve uma revisão para Maio. Fazem sentido estas previsões?
Não sou matemática por isso aceito como verdade aquilo que a Ministra da Saúde diz… quando ela diz que o pico é a 14 de Abril só faltou dizer a hora exacta [risos]. Esse é um problema: a má comunicação que existe entre as pessoas do Ministério da Saúde com a população. As pessoas sentem que há falhas, que não se consegue transmitir a verdade, e eu se não soubesse a verdade e estivesse do outro lado também ficava muito desconfiada. E a confiança é algo que não se deve perder, porque só se perde uma vez.

Estamos a falar de omissão de casos ou má comunicação da realidade?
Acho que é má comunicação da realidade. A Dra. Graça Freitas está numa posição de stress, a fazer um trabalho imenso, mantém sempre a calma e a serenidade nas comunicações que faz mas talvez se houvesse delegação de algumas coisas para outras pessoas e melhor coordenação a nível nacional… por exemplo, o Exército tem uma divisão de catástrofes, os militares aprendem e treinam para isso. Se calhar não houve tempo, falar deste lado é fácil, mas faltou pensar nestas coisas. E falha a comunicação, numa linguagem simples para as pessoas reforçando que a única coisa que podemos fazer é ficar em casa.

Hoje estamos com mais de 750 mil casos e 35 mil mortes. Há 12 dias estes números estavam reduzidos a um quarto. Isto significa que as vítimas estão a subir de forma galopante. Que números pode esta pandemia atingir?
O grande problema é que as pessoas são potencialmente infecciosas dois dias antes de terem sintomas. Ou seja, antes dos sintomas é problemático porque já se está a infectar. E se uma pessoa infectar três pessoas a pandemia é imparável.

Por mais que as pessoas esperem um milagre da comunidade científica neste momento voltar à normalidade está na mão da população?
Sim, completamente de acordo. Neste momento está nas mãos de todos nós, não adianta esperar milagres.

Que mensagem de especial cuidado pode deixar aos idosos?
Não sair de casa excepto em caso de emergência. Não ir ao hospital nem ao centro de saúde, que encontraram estratégias temporárias de lidar com as consultas e enviar as receitas. Não ir jogar às cartas com os amigos e ter especial atenção à família. Os abracinhos, os beijinhos, os almoços, isso está fora de questão. Em especial se tiverem doenças comuns nessa população: hipertensão, obesidade, diabetes, as neoplasias, tudo o que nos torna menos saudáveis exigem um cuidado acrescido. Este ano a Páscoa tem de ser diferente.

Como é o seu dia a dia actualmente?
Alterou-se completamente. As nossas consultas de rotina são feitas telefonicamente, adiamos a consulta presencial, e se for caso disso enviamos as receitas. Em relação às aulas foi uma mega-revolução porque em 24 horas passamos de um programa normal para um programa online. E está a funcionar melhor do que alguma vez sonhámos.

Como se conjuga o medo de ser contagiada e contagiar outros com a necessidade de estar no terreno?
Não é muito difícil. Terminei o curso em 1986 e ter medo de ficar infectada por causa das doenças no hospital é algo com que convivo há muito tempo. Estamos nisto com um espírito de missão por isso não se torna complicado.

Mas esta tem sido uma experiência desgastante…
Muito desgastante. Tenho sorte porque não faço Urgência mas os mais novos que fazem esse serviço e Cuidados Intensivos tem sido de facto muito complicado. Diariamente tenho esse feedback dos colegas, que trabalham com turnos muito intensos e depois há os casos dos profissionais que são infectados, é difícil.

Quer deixar alguma mensagem aos nossos leitores?
Há um tema importante: há uma desinformação que é muito má e é quase como uma segunda pandemia. As teorias de conspiração, que alguém fez não sei o quê, que já há vacina, portanto a desinformação é muito má. Está nas vossas mãos contrariar essa tendência, dizer a verdade sempre.

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