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04 MAI 2021
CONTO | "A Lenda de João Namoros"
Por Manuel Fernandes Vicente

No concelho raiano de Sabugal, quem de Soito procura por Vila Boa, e junto ao caminho que segue até São Gregório, há de encontrar um cruzeiro, umas vezes ignorado ou esquecido, outras com as cores que lhe dão as rosas, os crisântemos, as gerbérias e outras florações que lá deixam quem acha que disso são dignas aquela pedra viva de granito beirão e a história que ela evoca, e que talvez não seja apenas uma lenda… A inscrição nela registada aponta a data de 1919, mas o episódio que pretende evocar é anterior, num algures perdido pelo século XIX. É uma história que nunca foi escrita, passou oralmente pelas gerações, e, ouvindo o que os mais velhos dela dizem, é possível juntar os fragmentos e conhecê-la, bem como às suas mensagens subjacentes.

Havia no Soito, terra de contrabando, de proezas e da dissimulação que ambas exigem, uma família de lavradores com um único filho, o João, que, como era comum para os rapazes com mais de dez anos, pernoitavam na loja das vacas, como soía dizer-se, o piso térreo, quase um palheiro, que se compartilhava com os animais, a palha e as alfaias agrícolas da família. Os pais dormiam por cima, num primeiro piso assente num sobrado, que fazia a separação. Certa noite, a mãe do jovem levanta-se em sobressalto e acorda o marido numa aflição enorme. Que estava a sonhar com o filho, e que este estava no meio de um mato a lutar com lobos que, sendo muitos, o iriam matar. O lavrador, ainda estonteado com o sono, acendeu uma candeia e dirigiu-se ao alçapão feito no sobrado, iluminou a zona onde o filho dormia, e vendo o vulto do filho bem coberto por umas mantas logo sossegou, e também sossegou a mulher. Pouco tempo era volvido, porém, e a mulher volta a desassossegar-se, agora ainda mais inquieta, pois no sonho via o filho já com dificuldades em se defender e os lobos ainda mais agressivos. O lavrador sai da cama e chama alto pelo filho, mas não obtém resposta, desce depois as escadas, e vai até ao local onde ele dorme. Mas quem lá “dorme” é um molho de palha, bem moldado de modo a parecer um corpo humano tapado por umas mantas. Um vulto que podia ludibriar qualquer um. Agora é o pai se assusta, e começa a dar crédito ao sombrio pressentimento da esposa. Prepara à pressa o cavalo mais rápido, pega numa velha espada num canto, faz uma curta oração, sobe para a sela e parte a galope rumo a Vila Boa. E, ao aproximar-se de um local conhecido pelo sítio da Capela ouve o filho a gritar ao longe na sua refrega com uma matilha. Grita-lhe alucinadamente para que resista mais um pouco, que vai já em sua ajuda.

– “Tem-te filho, que aqui vou eu em teu auxílio” – terá dito, mas chega já demasiado tarde, o que encontra é um charco de sangue e dois pés do desafortunado jovem dentro de um par de botas afastadas, as únicas e tristes recordações que sobravam do filho. Os lobos, em alcateia tinham já sumido noite dentro. As gentes da região passaram a chamar àquele local Castanheiro de João Namoros e, anos mais tarde, aí ergueram um cruzeiro que mantém de pé e em granito esta memória coletiva.

O que os pais de João não sabiam, segundo uns testemunhos (ou sabiam, mas contrariavam, segundo outros), era da paixão do filho por uma bela rapariga de Vila Boa, cerca de cinco quilómetros distante do Soito, com quem ia namorar furtivamente sempre que podia, dissimulando-se sob a noite e enganando os de casa com o vulto de palha descoberto pelo pai. O João Namoros, como ficou conhecido entre a população do Soito, era um belo rapaz a quem nada metia medo, as moças de Soito andavam de olho nele, mas os seus tinham-se perdido nos da bela jovem da aldeia vizinha. Ia ter com ela às escondidas dos pais e para pena de muitas das suas conterrâneas. E isso não era nada habitual nessas aldeias beirãs de há muitas décadas. Rapaz do Soito era para casar no Soito com uma cachopa do Soito, e o mesmo se passava noutros lados. Ninguém gostava que os de fora viessem casar à sua aldeia, como também não era bem visto um jovem dos seus que fosse procurar namorada noutras paragens, como se não as houvesse, e perfeitas, na sua terra natal. Havia até o hábito de quem fosse de fora do Soito, e lá quisesse namorar, pagar a “patente”, como se se fosse servir de algo a que não tinha direito −nem óbvio, nem sequer natural. Eram assim os costumes nesse tempo. Tempos em que aquelas serranias, cobertas por enormes castanheiros seculares, carvalhos de toda a espécie, moitas, matos e fragas, eram percorridas silenciosamente por matilhas que atacavam os rebanhos e os galinheiros, e espreitavam a imprevidência ou o descuido de algum contrabandista solitário ou de alguém mais destemido e solitário. Os lobos estavam então demasiado presentes naquelas raias portuguesas, e chegou a haver lugares em que se colocavam cancelas nos caminhos de entrada nos povoados para que os lobos não pudessem entrar. Ainda no século XIX, algumas câmaras beirãs, como a de Vilar Maior, ordenavam mesmo às povoações que comparticipassem na compra de uma rês e de estricnina (também conhecida por noz-vómica) para dizimar as ferozes alcateias: a rês era cortada em pedaços, o alcaloide tóxico envenenaria cada um deles, e depois disso distribuíam-nos pelos locais mais frequentados pelas feras, ou onde elas já tivessem sido avistadas.

Mas a lenda de João Namoros (que tem laivos de semelhança com um caso real na região), parece trazer também uma mensagem subliminar de moral, de cautela e de defesa dos bons e velhos costumes da Beira mais remota, profunda e raiana. O João Namoros, apesar do belo e admirado rapaz que era, sobretudo no setor feminino, parece ser também o arquétipo de predicados que a moral estereotipada, os valores e a ética rural rejeitavam: escondia o seu relacionamento amoroso, recorria à dissimulação para o consumar, havia escolhido como amante alguém fora do círculo da comunidade soitense e, não menos importante, aventurava-se sozinho e destemido pela noite, desafiando o poder dos lobos, aos quais devia temor e que devia evitar.

Ficou o cruzeiro de pé, um pedaço de história e da mentalidade de um povo e de uma época, a recordar a sua tragédia, mas também para avisar e transmitir aos mais novos que uma paixão clandestina, e as imprevidências a que ela muitas vezes expõe, podem deixar qualquer um… na boca do lobo.

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